segunda-feira, 28 de julho de 2014

O DESTINO

Somente aqueles que são discípulos da morte sentem a doçura da vida.
                   Rubem Alves, Ostra feliz não faz pérola
 


O tema do destino, que nos visita vez ou outra, nem sempre é recebido com simpatia, pois nos lembramos dele somente em tempos difíceis. O filme A culpa é das estrelas o trouxe à baila com as tonalidades claras da adolescência. Não recebeu estrelas dos críticos, mas teve público fiel que lotou as salas com choros e lenços aos montes. Tudo que não estivesse ligado à história de amor passou despercebido à audiência. Mas ele fala também de matemática e de seus infinitos, do poder da literatura, das bolinhas encantatórias do champagne.

Após observarmos alguns de seus aspectos, passaremos ao tema do destino.

 
A HISTÓRIA PARA ADOLESCENTES

Baseado no livro de John Green, o diretor Josh Boone nos traz dois adolescentes com câncer: Gus (Ansel Elgort) e Hazel (Shailene Woodley).
Desculpemos o diretor por alguma abordagem mais óbvia como o evidente turismo em Amsterdã e algumas situações improváveis. Por outro lado, suas personagens alternam entre dúvidas da juventude e aspectos de complexidade sem cair em autopiedade ou vitimização. Há foco nos dois protagonistas e economia nos detalhes à volta deles. Há simplicidade no desenvolvimento da história e muita, muita beleza.  



Na primeira cena do filme, mãe e filha estão em consultório de terapeuta. A queixa apresentada é a depressão da filha. Na verdade, o ceticismo de Hazel e sua capacidade de encarar a realidade com os pés no chão, em explícito sentido de realidade, não cabem na imagem de vida que a mãe pretende para sua filha. Ir ao grupo de apoio seria a possibilidade de ela se livrar desse provável estado depressivo. Acaba aceitando a sugestão da mãe. Lá encontra Gus que tem dentro de si o sonho do herói e um extremo otimismo. Em nome da honra ele quer abraçar sua história e fazê-la grande.
Esse encontro no grupo de apoio promove situações que vão desde o confronto de ideias até a imersão de um na vida do outro. A divergência entre suas visões de mundo estimula o relacionamento. A influência exercida entre eles é o eixo principal da narrativa. A mudança dos dois ao longo da convivência passa por situações variadas. A obsessão de Hazel pelo final do livro de Peter Von Houten, cuja história é interrompida no meio de uma frase torna-se o ponto de mutação na vida dos dois.

A visita à casa em que Anne Frank morou em Amsterdã é outro momento importante. A jovem morta aos quinze anos tem imagens pelas paredes da casa e as palavras de seu diário são lidas em gravação. Tais imagens e frases mobilizam Hazel. Nesse momento Anne Frank e Hazel são duas adolescentes em situação de crise existencial. Um diálogo especial se estabelece entre elas. Hazel, então, aceita o amor de Gus.

Mas essa história não tem final feliz tal como se espera de um filme para adolescentes.

ASSUNTO DE "GENTE GRANDE"

Logo de início, somos apresentados à perspectiva próxima da morte. O filme traz o tema do destino elaborado com delicadeza. Tanta, que os jovens nem percebem. O tema central será o embate dos protagonistas em volta do amor e da perplexidade perante a vida que lhes coube. São jovens e a esperança não cabe em seu vocabulário.

A culpa seria das estrelas? Quem estabeleceu essa fatalidade? Os oráculos de todos os tempos puderam responder a essa pergunta? As artes divinatórias puderam em algum momento da história humana, resolver a questão de um destino implacável? Para nossas personagens ele é injusto. A vida surge como uma prisão. Sem aberturas, sem liberdade.

Por outro lado, como uma obra acaba no meio de uma frase? As personagens simplesmente somem. Por quê?  Hazel e Guz vão em busca de uma resposta. Essa suspensão literária no tempo e no espaço transforma-se em uma triste metáfora de suas histórias. Peter van Houten, o autor do livro, acaba sendo tão implacável como a divindade que nega justiça à existência na adolescência. Não existe resposta. Essa é a busca de uma lógica onde não há lógica possível. Na literatura e na vida.

Porém há algo que alivia o absurdo. É o sentimento do amor aparece abrindo espaços que são infinitos dentro das possibilidades concretas de uma vida que se perde em um destino perverso.

O diálogo a respeito dos números e do infinito acrescenta ao texto narrativo uma conta que foge ao pensamento racional. É a derrocada lógica matemática. Cria-se Uma eternidade dentro dos dias numerados do nosso pequeno mundo. Porque alguns infinitos são mais infinitos que outros.

Substitui-se a falta de lógica em um destino duro, por outra matemática, por outra conta de multiplicar. É aí que, então, o infinito e as estrelas fazem sentido. Nas cenas de abertura e de encerramento do filme Hazel faz contato com a abóbada celeste. Outra metáfora se estabelece: a das estrelas como símbolo de liberdade. Entramos no terreno da pura poesia em que a transcendência da matéria pode ser exercida. Se elas podem estar comprometidas com a questão do destino e da morte precoce, também falam de imensidões. 

O garçom do restaurante holandês conta a história de Don Pérignon que, segundo ele, quando produziu o champagne teria dito estar provando estrelas. Na história do casal enamorado em momento de celebração, elas  dão-lhes espaços encantados.


Essa é a via possível para escapar da Moira, a lei primordial que paira sobre todos. Ou para suportar o sofrimento que ela gera. Não se afasta de nós a imagem das moiras gregas, as três irmãs, que estão sempre a fiar, a tecer e a cortar os fios de nossa frágil existência. Da Grécia antiga ainda ouvimos o barulho da roca de fiar. Sem escolhas, assistimos ao destino agindo a despeito de nossa vontade.

A menos que possamos contar com os espaços encantados de estrelas e de infinitos momentos de amor.                    

PS: Lembra-se da carta escrita por Vanessa Andrade, a filha do cinegrafista morto em manifestação em fevereiro deste ano?  A análise dessa carta permite hipóteses interessantes de possíveis relações entre a vida dela e a de seu pai. Há a mobilização de ciclos temporais, tais como a que Vanessa vive e é presente na vida de todos nós. O estudo indica significados de acordo com a teoria astrológica. Caso não conheça, experimente observar como isso ocorre. O texto está em  http://coisasdoimaginario.blogspot.com.br  no marcador Biografia.  

quarta-feira, 23 de julho de 2014

WOODSTOCK

Manhã frenética na capital paulista. Muitos automóveis tentando cruzar a cidade e chegar a tantos  lugares diferentes.

Aqui estamos nós, minha irmã ao volante e eu de carona, paradas num engarrafamento, tentando cruzar uma ponte que nos permitirá acessar a Marginal Tietê, sentido centro. Minha irmã toda pensativa, comenta:

- O mundo virou de ponta cabeça depois de Woodstock. Como conviver com essa quantidade de automóveis, ela exclamou.

- Automóveis e motocicletas, disse eu, fixando meu olhar no vão entre os carros.

Havia uma fila enorme, um número incontável de motocicletas, motoboys e, logicamente, suas buzinas de barulho tão irritante.

Nesse instante, vem parando ao nosso lado, uma daquelas motos gigantes, linda, exuberante, daquelas fabricadas pela marca americana tão famosa. Era uma motocicleta preta, brilhante, com retrovisores enormes e dois bolsões de couro nas laterais. O piloto vestido também a caráter usava uma jaqueta de couro preta, toda adesivada e um capacete preto, pequeno e redondo.

Comento com minha irmã que esse motoqueiro era um que estava voltando de Woodstock, e ela retruca:

- Ah! Ele é muito jovem. Só, se de repente, ele foi buscar o pai em Woodstock.

O trânsito começa a andar  e olhando para o bagageiro da moto, eu respondo:

- E ele o encontrou. Veja o que ele leva no bagageiro.

E lá estava no bagageiro,  pendurado um crânio, uma cabeça usando óculos escuros.
Começamos a rir muito. Esquecemos, por alguns minutos, da agonia daquele trânsito e concluímos que alguns dos fantasmas de Woodstock, por alguma razão, desfilam  por entre os congestionamentos das manhãs paulistas.


 Autor: Adenair  Vazz

Esta crônica foi produzida durante o curso "A Crônica: conhecendo e escrevendo. Cotidiano, experiência e criação" no espaço Gaia Cultural em São Paulo/SP, durante os meses de Maio e Junho de 2014.

segunda-feira, 21 de julho de 2014

INTENSIFICANDO A VIDA

ENTREVISTA E REFLEXÃO

A expressão intensificar a vida - que eu encontrei em uma entrevista com Daniel Piza, jornalista cultural - abre uma série de perguntas. Partindo dela e de algumas colocações que nos oferece Mircea Eliade, filósofo romeno, convido você a me dar uma resposta sua, totalmente sua. O que pode/poderia intensificar sua vida? Como seria uma maneira mais intensa de viver?

INTENSIFICANDO A VIDA

As palavras de Daniel Piza (1970-2011) ocupou minha mente nas primeiras semanas de 2013. Li tal entrevista na época de sua morte que foi prematura. Era muito jovem e já tinha em seu repertório dezessete livros escritos, além de enorme produção em jornais, com comentários sempre atuais e pertinentes nas várias áreas da cultura contemporânea. Fará muita falta. Daí esta visita a algumas de suas idéias.

A entrevista citada procurava recolocar a área do jornalismo cultural no lugar merecido na mídia. Entre outras afirmações, dizia que  “/.../artes e idéias são formas de intensificar a vida, de multiplicar nossas opções, de ir além da vidinha apoiada sobre as muletas emprego & família... Quando olho para meus livros, CDs e DVDs, penso: quanta coisa boa para (re)viver!"”.

Que poder teriam livros, CDs e DVDs para promover força? E qual o valor impresso por Daniel Piza na arte literária e na música, em que medida elas fariam diferença na vida de alguém multiplicando opções? Daniel nos mobiliza a uma percepção diferente, acordada para outras dimensões que o acesso á cultura possibilitaria. Seria uma espécie de janela para a beleza das cores e formas, dos sons na música e para a imensa variedade de concepções de vida em cada página de literatura.

Na verdade, cada uma dessas experiências culturais nos oferece a estética e outros níveis de compreensão e de sensibilidade. Um movimento para além do meramente histórico, em que emprego e família fariam parte como repertório de experiências. A cultura abriria um leque de possibilidades em que o contato com símbolos e imagens traria uma validade universal. O homem com alternativas de acesso a essas manifestações estariam prontos para irem além das muletas e apoios que teriam um poder limitador. Apoiar-se representaria estabelecer dependência e segurança. Uma aposta para não correr riscos. O preço seria caro: não ir muito longe.

Neste contexto, cabe uma citação de Mircea Eliade, segundo o qual o símbolo e a imagem pertencem à substância da vida espiritual. O filósofo ainda diz que há uma “importância existencial das imagens para o homem moderno” (texto escrito em 1952): elas teriam o poder de romper “o universo fechado” do ambiente quotidiano e desvendaria para ele [o homem]um mundo mais vasto e rico “carregado de significações espirituais e de promessas”. Essas palavras de Eliade completam o pensamento de nosso jornalista. Mesmo com simplicidade, as palavras de Daniel Piza nos conduzem aos níveis dos símbolos e das imagens presentes nas manifestações de arte que amplificam as possibilidades da existência humana. 

A participação na vida cultural pode trazer o que Daniel chama de intensificação da vida. Isso seria uma maneira de escaparmos de uma monótona existência materialista e limitadora de tudo o que podemos e não ousamos.

Daniel Piza talvez não tenha pensado nessas questões. Mas abriu janela para a reflexão. Essa é a possibilidade que temos quando nos propomos à leitura de blogs, jornais, livros e imagens de todo o tipo. Encontramos surpresas e a confirmação (ou não) para nossa maneira de ver o mundo. Encontramos parcerias e outro tipo de alimento. Ler é enxergar pelos olhos de outros, através de suas palavras, dos sons e imagens por eles escolhidas. Assim ampliamos nossa visão e aprendemos com outras perspectivas. Intensificamos nossa vida, nossa biografia.        

Ao longo dos últimos quatro anos, tenho visitado biografias. Entre elas, encontrei Beethoven e Liszt, nos quais procurei a vocação criativa pelos sons. Na vida e obra do chinês Ai Wei Wei, um dos responsáveis pelo estádio Ninho de Pássaro, observei a resistência à opressão política. No cinema do faroeste e de seus mocinhos, encontrei a manifestação do mítico heróico. No inesperado romantismo de Woody Allen e na magia de Selton Melo, encontrei a esperança e a ordem superior das coisas. Todos esses assuntos tinham dois pontos em comum: tratavam da cultura e falavam daquilo que é permanente busca na natureza humana. Algo que se constrói pelas imagens e símbolos, pelos recursos artísticos que ganham contornos estéticos e, ás vezes, éticos.   
É aí que habita a importância existencial das imagens, de que nos fala Mircea Eliade. Uma força delas que pode fecundar nosso cotidiano, presentes na arte que nos leva para dimensões em que possamos promover veemência em nossas experiências, para além das limitações naturais do nosso contexto histórico. Porque tudo isso alimenta nossa alma, oferece coesão a nossa realidade e quiçá nos livre da fragmentação e da liquidez do mundo contemporâneo.

PS: eliade, Mircea. Imagens e símbolos. Trad. Maria Adozinda O. Soares. Lisboa: Arcádia, 1979,  p.7.



sexta-feira, 18 de julho de 2014

CENAS DO COTIDIANO: UM DIA (IN)COMUM NA VIDA DOS PAULISTANOS


15 de maio de 2014. Em princípio, uma quinta-feira como outra qualquer. Ao sair do trabalho, num cliente situado à Avenida São Luís, em frente à Biblioteca Mário de Andrade, opto por tomar o metrô, a partir da estação República, com direção à estação Paulista. 

Considerando-se o trajeto até a Praça da República e o deslocamento de uma única estação de metrô, saí com 30 minutos de antecedência, tempo razoavelmente suficiente para chegar adiantado ao meu destino. 

Tudo correu perfeitamente bem durante a caminhada até a estação de metrô. Entretanto, assustado, noto que há um volume de pessoas bastante grande aguardando para descer a escada que nos levaria da rua até o piso onde se encontram a bilheteria e as catracas de acesso às linhas de trem. Neste momento, dou-me conta que estou prestes a entrar numa fria. Mas, persistente que sou, resolvo prosseguir. 

Exatos cinco minutos depois, consigo chegar ao final da escada e, eis que, para um espanto maior ainda do que o anterior, vejo-me diante de seis ou sete filas enormes, adequadamente organizadas, com destino às catracas de acesso aos trens. Passados mais cinco minutos, noto que me desloquei três, no máximo quatro metros. 

Impaciente, como todo bom paulistano, penso no tempo que estou perdendo e que poderia ser utilizado para alguma atividade produtiva. Ideia: retirar um livro da mochila e começar a ler. Raciocínio: na pior das hipóteses, não precisaria nem me dar ao trabalho de andar. 

O movimento cadenciado das pessoas, a passos curtíssimos, me levaria ao destino almejado sem qualquer esforço ou necessidade de concentração no trajeto. Dito e feito: cheguei à catraca de acesso sem sequer perceber o tempo que se passara. A partir do momento em que abri o livro, o tempo passou a ser medido em páginas lidas (duas páginas e meia até a catraca). Transposta a catraca, vi-me obrigado a ficar atento aos passos, ao caminho e às pessoas à minha volta. 

Confesso que demorei mais que o usual para descer as escadas que me levariam até a plataforma de embarque. Todavia, estava a desfrutar da leitura leve e agradável do último romance de Daniel Galera (Barba ensopada de sangue), e mais uma página se fora. Dentro do trem, devidamente acomodado para não correr o risco de cair, continuo a deleitar-me com o livro. Em três ou quatro minutos, chegamos à estação Paulista. 

Distraído, assustei-me quando vi as pessoas entrando e falando: “... não desçam. A Polícia Militar jogou bombas de gás lacrimogênio dentro do Metrô... continuem dentro do trem... não desçam... está perigoso...”. Atônito, imóvel, estupefato, assustado, congelado, quando sai do estado de letargia, já era tarde. As portas haviam se fechado e o trem iniciava o movimento. Neste momento o livro já voltara para a mochila e meus olhos estavam a observar o semblante das pessoas e as conversas cruzadas. 

Olhos vermelhos, muito vermelhos, uma irritação muito forte. Uma senhora vertia lágrimas incessantemente. Uma garota pedia por vinagre (qual seria a lógica? O vinagre combateria os efeitos do gás? Como utilizá-lo? Cheirá-lo? Derramá-lo nos olhos? Esta não, que ideia estúpida.). Alguns jovens portando bandeiras, confesso que não pude identificar se havia alguma insígnia ou brasão, e questionando a ação da Polícia Militar: “... é um absurdo. A polícia deveria nos proteger. São uns truculentos. Somos tratados como bandidos. Nunca vi coisa igual...”. Não consegui prestar atenção em mais nada. 

Chegando à estação Faria Lima, desembarquei, assim como todos que não conseguiram descer na estação Paulista. Passei a me mover com mais vagar, sem pressa. Deixando as pessoas passarem, esperando que a plataforma se esvaziasse. Procurei por uma escada rolante e subi tranquilamente. Não conseguia pensar em nada. 

Estava me movendo, apenas me movendo. Ao sair da estação, já na Rua Teodoro Sampaio, pude recuperar meus pensamentos e comecei a fazer conjecturas: e se as pessoas de dentro do trem, quando na estação Paulista, entrassem em pânico? E se as pessoas que estavam na plataforma do trem na estação Paulista, em pânico, resolvessem forçar a entrada nos trens, sem qualquer tipo de comunicação, apenas para fugir dos efeitos do gás lacrimogêneo? E se houvesse pânico entre as pessoas de dentro e de fora do trem? 

Enfim, e se o pânico se instalasse diante da situação exposta, a quarenta ou cinquenta metros abaixo do nível da rua, e todos buscassem as escadas, todos querendo fugir dali para se dirigir à rua? E se? E se? Foi quando me dei conta que estávamos na cidade de São Paulo, em pleno horário de rush do metrô, num dia de semana, num período em que estavam ocorrendo manifestações dia sim dia não, e que, talvez, apenas talvez, tudo isto estivesse tão enraizado na cabeça das pessoas que ninguém, excetuando-se eu e mais duas ou três pessoas, tivesse se espantado com o ocorrido. 

O trem continuou seu trajeto, as pessoas seguiram para seus destinos, mais pessoas entrando e saindo do metrô e tudo ocorreu como vinha ocorrendo dia após dia nesta cidade caótica, neurótica e apaixonante. Parece que em São Paulo, no cotidiano, os imprevistos são rapidamente absorvidos e a vida segue seu curso. Ou seria este o meu olhar para aquela cena do cotidiano paulistano?

Autor: Maurício Avelino Sampaio - Consultor Financeiro

Esta crônica foi produzida durante o curso "A Crônica: conhecendo e escrevendo. Cotidiano, experiência e criação" no espaço Gaia Cultural em São Paulo/SP, durante os meses de Maio e Junho de 2014.



quarta-feira, 16 de julho de 2014

A BELEZA EM FELLINI E PAOLO SORRENTINO


O artista plástico Bartolomeo Gelpi, em palestra a respeito do filme A Grande Beleza de Paolo Sorrentino, disse ter saído do cinema com a impressão de que havia visto uma obra prima.  Guardei o mote sugerido por esse depoimento. Sem pretensões de concluir o assunto, convido você a responder à pergunta antes de ler o texto abaixo: por que esse filme seria uma obra-prima? E esse filme ainda nos incita a outra questão. Pelas entrevistas do diretor e pela observação, podemos estabelecer uma relação desse filme com La Dolce Vita de Fellini. Como e a partir de que dados?  

O começo, o BÁSICO
A relação entre os dois filmes pode se alongar por vários aspectos, mas ela começa na parecença entre os dois protagonistas e no amor pela cidade de Roma. Paolo Sorrentino (2013) parece ter cunhado sua personagem Jep Gambardella, à luz de Marcelo de Fellini (1960).  Ambas sofrem de mal parecido, de uma insatisfação mansa. Uma mesma profissão lhes oferece um trânsito fácil pela alta sociedade italiana entregue a noitadas, em meio a decadência e alienação moral, imersa em vazio e relações fúteis. Os dois parecem apenas acomodados com essa opção de vida.

Notamos também o mesmo amor pela cidade que explode na tela generosamente  em toda a grandeza de sua arte.  Poderíamos até afirmar que Roma divide o protagonismo dos filmes com as personagens. Há outros aspectos que mereceriam atenção como a forte presença da Igreja e a crítica à sociedade italiana em ambos; e ainda outros dependentes do contexto de cada uma das fases históricas dessas encenações separadas entre si por mais de cinquenta anos. Mas há mais.

Buscas
Os dois personagens demonstram uma inquietação que acaba gerando buscas pessoais.  A de Marcelo poderia ter sido desenvolvida a partir do contato com um amigo, a quem ele pede ajuda, por acreditar que ele possui o segredo de ser feliz.

Em um diálogo a respeito de um quadro de Giorgio Morandi, (pintor italiano, 1890-1964) o amigo Steiner, conversando com ele, diz que “Em uma arte nada ocorre por acaso.” E continua assim, “Deveríamos nos libertar de paixões e sentimentos na harmonia da obra de Arte realizada. Naquela ordem encantada, conseguiríamos nos amar tanto e vivermos soltos, além do tempo. Soltos. Soltos.” 

Para Steiner, a perspectiva da existência é uma prisão em que imperam o caos e as paixões que conduzem à ausência de harmonia. Por isso, ela é desencantada e sem sentido. Somente a arte poderia trazer a ordem, a felicidade e a liberdade. Quando esse amigo se suicida sem explicação, Marcelo é devolvido à desesperança.

Por sua vez, Jep faz sua caminhada elegante até que a morte de seu primeiro amor o move a uma perspectiva diferente das coisas. Apresenta então sinais de mudança e até um anseio de cunho religioso ou espiritual, que se demonstra inútil tendo em vista a fragilidade da pessoa da Igreja a quem ele dirigiu sua dúvida.

O primeiro acaba sua trajetória em uma praia com um grupo após uma noitada, nada tendo mudado para ele. Mas, para Jep se não houve resposta à dúvida espiritual, ainda sobra uma promessa de renovação. Há no ar um sorriso final e uma possibilidade de retomada de sua vocação.

Seria fácil, precipitada e até destemida a conclusão de que Fellini tem uma visão pessimista da existência. Talvez sim. Mas seria irresponsável concluir assim tão ligeiramente. Uma análise mais completa poderia explicar detalhes da questão, o que não cabe neste momento.

Seria também difícil definir um motivo que fosse conclusivo para as mudanças de Jep e de sua decisão final. Observamos sinais dos efeitos dessa mudança a partir de suas palavras. À pergunta “ Por que não mais escreveu um livro?” ele responde: “Por não ter encontrado a grande beleza”. Preferiu permanecer mudo. Mas sabendo-se vocacionado à sensibilidade, essa postura não deve ter ser fácil, também por estar em contato contínuo com expressões múltiplas da arte. Ter mudado a decisão, propondo-se possivelmente  a retomar sua vocação, será um índice de que encontrou a grande beleza?

OBRA-PRIMA
A questão estética perpassa sutilmente os dois filmes, como se pensar a vida junto da experiência da arte possibilitasse o alargamento do horizonte, para além da futilidade alienante e de uma vida que aprisiona. Para Marcelo a harmonia através da arte, que seria promessa de felicidade, tornou-se impossível. A obra de Fellini ainda é atual após cerca de cinquenta anos e guarda características de uma obra prima. Mas o destino de sua personagem é fraudado e ele se distrai de sua busca. Não há salvação para Marcelo.

Jep tem sorte diferente. A visão de um navio naufragado após a morte de Ramona e uma série de acontecimentos na vida das pessoas a sua volta, tudo isso talvez lhe tenha indicado a necessidade de uma resolução pessoal.

Nada é explícito. Há um namoro com o imponderável em ruptura com a lógica, um conluio com a imaginação. A estranheza vai abrindo campo para nova interpretação. Ler nas entrelinhas é essencial. E a arte é o veículo para desvendar esse percurso.

Jep talvez perceba alternativas para a grande beleza que não chegou a encontrar. Pontualmente, para ele há outras possibilidades nas aberturas de sua fantasia netuniana. Um teto que se abre em mar, uma revoada de pássaros ao sopro da santidade, uma freirinha que brinca com crianças ou colhe frutos, uma coleção de chaves que abrem tesouros. 

São vestígios do belo misturados às percepções do dia-a-dia. São sinais que se espalham por tudo e que podem ser alívio para a devastação de uma vida sem sentido invadida por um palavrório mundano e frívolo. Algo maior acontece quando ele anda reflexivo pelo cais do rio ou contempla pequenos gestos, como a cena de beijo entre namorados ou as formas das esculturas e as luzes-sombras de pinturas. A reflexão cria, desenha sentido, constrói corpo e alma. Nessa experiência concreta há incorporação de um valor ou de uma essência intemporal porque gera contato e harmonia.   

A questão estética permanece como um pano de fundo implícito suportando os dramas emocionais e existenciais da personagem. O título escolhido por Paulo Sorrentino para seu filme nos conduz desde o princípio para essa leitura.

A sensibilidade de Jep talvez tenha conservado em latência sua busca pela grande beleza. Essa ausência foi mantida em aberto. Até que algo o impulsionou à frente. E talvez ele tenha encontrado a resposta em cada momento do belo possível, seja  quando cada chave chega à porta correta ou quando a girafa desaparece porque é assim que o mágico deseja. Eis um átimo de magia. Eis aí uma expressão da grande beleza.  

Jep encontrou. E nós também encontramos em todo esse conjunto uma obra-prima porque há nela a grande beleza e a essência do intemporal.

(*) Palestra realizada na Casa do Saber em São Paulo, em março de 2014, com o artista plástico Bartolomeo Gelpi e o musicólogo e jornalista Zuza Homem de Mello.

PS 1: Resenha de Veríssimo a respeito do filme A Grande Beleza.  http://oglobo.globo.com/opiniao/a-beleza-maior-11375771


sexta-feira, 11 de julho de 2014

CARTA DE VANESSA, A FILHA DO CINEGRAFISTA SANTIAGO ANDRADE

“Meu nome é Vanessa Andrade, tenho 29 anos e acabo de perder meu pai”.


Muita gente leu a carta de Vanessa, filha do cinegrafista, de 49 anos, morto em uma manifestação em fevereiro de 2014. Foi uma perda dolorosa. A carta é emocionada.

Vanessa escreve com um tom em que se nota principalmente o sentimento de gratidão, o que é estranho pelos aspectos que rodeiam a morte de seu pai. Não tenho dados para avaliar a grandeza de sua postura nessa confissão publicamente realizada, quase como um depoimento de fé. Mas, talvez seja interessante indicar outra leitura possível desses fatos.
Ela faz questão de indicar que tem 29 anos. Essa marcação temporal estabelece como possível a relação com a simbologia astrológica, caracterizada pela determinação de ciclos de experiência.
Por volta dessa idade, do ponto de vista astrológico, temos que enfrentar um desafio. Uma decisão deve ser tomada, uma escolha deve ser feita. Trata-se de uma fase que nos obriga a desenvolver questões de nossa autoridade. É uma chamada para nos tornarmos adultos. Nessa época todos vivemos o que se denomina o retorno de Saturno, pois é momento em que esse planeta está ativo.
No caso de Vanessa, a situação foi contundente e a experiência dura. Ao invés de reagir agressiva, melancólica ou depressivamente, ela foi buscar em sua história com a figura paterna alento para continuar sua vida. O tom da carta descreve situações de convivência que indicam a forte afinidade que havia entre eles. Ao rever esse caminho ela extrai dele recursos para sua trajetória. Alimenta-se deles nesse momento dramático. Libera-se assim de cair na truculência de uma possível vingança ou outra reação que seria letal para ela mesma. Longe disso. Constrói um tipo de reflexão que gera significados para sua vida. É quase um acerto de contas com a morte súbita que lhe tirou essa presença. Nessa carta ela nos diz que aceitou essa fatalidade e que acumula créditos.
Ele tem internalizada a presença desse pai amoroso. Ele ainda está vivo como exemplo. Ela conta com os valores, o modelo e a força que essa figura de pai teve em sua vida, colaborando para a constituição de sua pessoa.
 Não por acaso, a figura paterna é um representante da presença do saturno mítico e psicológico. Vanessa soube fazer dessa fase saturnina um momento de aprendizagem e crescimento.
Apesar de toda a dor da situação, isso é bonito demais.
A seguir mais um trecho da carta de Vanessa em que ela estabelece um compromisso com seu futuro em nome de seu pai:

Esta noite eu passei no hospital me despedindo. Só eu e ele.
Deitada em seu ombro, tivemos tempo de conversar sobre muitos assuntos,
pedi perdão pelas minhas falhas e prometi seguir de cabeça erguida
e cuidar da minha mãe e meus avós. Ele estava quentinho e sereno.
Éramos só nós dois, pai e filha, na despedida mais linda que eu poderia ter.
E ele também se despediu.

O texto completo da carta: http://www.opovo.com.br/app/maisnoticias/brasil/2014/02/11/noticiasbrasil,3204988/a-jornalista-vanessa-andrade-se-despede-do-pai-em-rede-social.shtml


terça-feira, 8 de julho de 2014

O ASTRÓLOGO E A ASTROLOGIA

Você não encontrará sábio judeu e presbítero cristão
que não seja também um astrólogo ou vidente.
Comentário atribuído ao imperador romano Adriano(*)





Já me perguntaram como eu cheguei à astrologia. Também já me perguntaram o que ocorre na leitura do mapa, naquele momento íntimo do atendimento astrológico. Dúvidas naturais e possíveis para quem é leigo. Exercendo sua curiosidade, essas pessoas têm abertura para a astrologia, o que não é o mais comum.  


A imagem desse mundo de símbolos nem sempre foi bem aceita. A astrologia passa por resistências e preconceitos que estudos históricos provam terem sido presentes em todos os tempos. Ela chegou a ser incluída entre as ciências acadêmicas, mas foi sendo retirada dessa seleção pouco a pouco, a partir do século XVII.

Daí em diante houve a separação entre a astronomia e a astrologia. Durante séculos elas estiveram unificadas pela simples razão de provirem da mesma raiz. A cosmovisão do ser humano então incluía a presença do espaço celeste. Com a separação entre astronomia e astrologia, a percepção e a imagem da astrologia perderam um lugar importante na interpretação da vida. E a vida de todos também perdeu. Perdeu talvez demais.

Apesar de contar em sua longa história com crises de todos os tipos, ela permanece viva. Nos séculos dezenove e vinte ganhou corpo com as abordagens psicológica e simbólica. Tais abordagens cabem na perspectiva que tenho dela.

É desse contato com essa linguagem resistente a todas as complexas mudanças históricas que me proponho a falar. Também de uma formação e desenvolvimento profissional desde que fiz a escolha para este ofício. Daí que estes relatos sejam pessoais e particulares.

As perguntas que eventualmente têm sido feitas me colocaram diante de questões interessantes. Fizeram com que eu pensasse a respeito do meu dia a dia como astróloga. O atendimento como se efetiva? A relação do cliente com o desenho de um mapa como se realiza? Quem é essa pessoa que me procura? Como cheguei a este lugar para responder a dúvidas das pessoas que estão em geral em fase difícil? E como foi se formar astróloga nas últimas décadas do século XX?

O diálogo do público com a astrologia se produz a partir da linguagem de um intermediário, do astrólogo. Na verdade, uma pergunta é talvez decisiva: Por que se procura um astrólogo? Para resolver problemas, sanar dúvidas e para saber o que vai acontecer, ou seja, o futuro. Difícil escapar dessa necessidade. Os desenhos do mapa e seus símbolos deverão se transformar em respostas. E elas são às vezes paradoxais como a própria vida.


Porém, mais do que dizer a respeito do futuro, a astrologia amplia a compreensão das pessoas em relação à vida. Essa talvez seja a maior colaboração da astrologia hoje em dia: poder dar significados às experiências a partir da linguagem que a constitui e da percepção de seus símbolos. Mediar essa compreensão é talvez a maior e mais e rica tarefa do astrólogo.
São estas histórias que ocuparão o espaço das Crônicas de uma Astróloga.

(*) STUCKRAD, Kocku Von. História da Astrologia. Da Antiguidade aos nossos dias. São Paulo: Globo, 2007. P. 83 

      sexta-feira, 4 de julho de 2014

      BAGDAD CAFÉ: DA ORDEM DO AMOR

      Há muito tempo, o filme Bagdad Café fez sucesso e apresentava uma especial trilha sonora de Bob Telson (Calling you) premiada em 1988. Volto a ele para buscar sinais daquilo a que chamamos amor, ou melhor, um tipo específico de amor. A personagem chega a um café-motel-posto de combustível em um deserto na Califórnia e aos poucos vai se acomodando. Transformam-se o contexto e todos. Instala-se outra qualidade nos relacionamentos. Isso é da ordem do amor. Da harmonia no mundo. Por que e como isso acontece?

      UMA HISTÓRIA SIMPLES

      Out of Rosenheim (Bagdad Café) é uma produção alemã de 1987, dirigido por Percy Adlon. Um casal alemão a caminho de las Vegas, briga no meio do deserto de Mojave na Califórnia. A  mulher abandona o marido e segue sozinha, carregando sua mala, a pé até o Bagdad Café, onde transcorre a história. O contato dessa personagem feminina com as pessoas que moram nessa pequena comunidade promove transformações em todos.

      A caminhada inicial em câmera lenta é arrastada e sob um sol de deserto e roupas pouco adequadas para o clima. O sapato é social, os pés afundam nas areias e a mala pesa. O alívio não parece estar perto de ser alcançado. É o deserto que a acolhe, enquanto o vento que sopra levantando poeira, e a secura e a falta de sombra escaldam o corpo e a alma.  

      Ao chegar ao posto de gasolina, ela não tem muito consolo. A responsável pelo estabelecimento estranha a forasteira. O quarto é simples e o conforto mínimo.Como se estas novidades desagradáveis não bastassem, há outra: ela trouxe por engano a mala do marido. 

      A dificuldade com a língua inglesa não facilita a convivência. Com poucos clientes, há ócio, individualismo e consequente desconexão entre os habitantes da comunidade. Na verdade, solidão.

      O garçom é paciente, observa quieto e passa o tempo que pode na rede. O filho se exercita no piano quando a mãe permite. A presença de nova cliente, apresentada pelo sobrenome alemão impronunciável, impede o estudante de se exercitar. O marido preguiçoso parece não agradar em nada.

      A dona do posto-café, Brenda, apresenta um humor irascível, uma imagem pouco simpática com tudo e todos. A única que parece ter o dom de se aproximar de Brenda sem perigo é a filha mimada que aparece de vez em quando para lhe pedir dinheiro e de novo, ir-se a outras paragens.  Há dois hóspedes, um senhor mais velho e uma jovem que faz tatuagens nos motoristas de caminhão que chegam para abastecer.Pouco depois, soma-se a este grupo um jovem mochileiro que pede para acampar. 

      Nesse conjunto pequeno e heterogêneo ocorre, então, a partir da chegada de Jasmin uma crescente sintonia. Inventa-se um show. Bagdad Café, torna-se uma referência para os motoristas dessa estrada, um divertido ponto de encontro e acolhimento para todos.

       Um dia, Jasmin tem que ir embora por questões de documentação por ser estrangeira. Sua partida é sentida por todos. Um tempo depois, seu retorno faz que tudo se harmonize novamente. Essa história não tem nada de original quando é lida dessa forma. Mas, esconde outras leituras.



      UM POUCO ALÉM DE DETALHES

      Recontemos a história. O horizonte desértico, o vento que sopra levantando poeira, o sol a pino, a falta de verde e de sombra. É  a partir da rudeza desse contexto que a personagem chega ao café-motel onde a estória se desenrola. Tendo abandonado o marido, depois de uma cena de agressividade, lá inicia sua nova vida com recursos mínimos para a sobrevivência: dinheiro, a roupa do corpo e poucos recursos linguísticos de comunicação. 

      Apesar dessa escassez, ela vai descobrindo tudo de que necessita para estar em relação com o ambiente, que apresenta rupturas e desconexão entre os que dela participam. 

      Seu compromisso é tornar sua nova vida viável. Preocupada com questões de ordem, tem desejo de tornar seu mundo mais eficaz (ocupa o espaço de seu quarto, ajuda o garçom, limpa o escritório). 

      Joga boomerang com os jovens, entrega-se e desnuda-se à pintura de Rudi Coxx. Transita entre os parceiros, exercendo uma atração espontânea e possibilitando a criação de uma nova ordem de funcionamento mais perfeito onde havia caos e separação. 

      Sua comunicação faz-se pelo olhar (com o garçom), pelos risos (com a adolescente e nova amiga), pela escuta musical (com o pianista), pela sensibilidade estética (com Rudi Coxx). Há comunicação muda. Há sutileza nesses encontros.      

      De uma forma feminina e delicada, ela se propõe aceitar a realidade, sem revolta ou questionamento. Vai lidando com os dados acessíveis. Sábia aceitação. E as pessoas à sua volta vão encontrando novas expressões de si mesmas e, aos poucos, formando um novo desenho do conjunto inicialmente desconexo.

      Ao longo desse processo, ocorrem encontros improváveis: pela estética e pela afinidade de consciência (com Rudi Coxx), pela maternidade e pelo feminino (com Brenda), pela herança musical (com o pianista), pela alegria (com os jovens).

      Talvez possamos chamar de amor a esses relacionamentos. Um tipo diferente de amor que surge quando as diferenças já não se fazem presentes e não há críticas. A aceitação do outro da maneira como ele é, despertou o melhor em cada um. Jasmim desmancha as barreiras com seu poder coersivo que vem de dentro de si mesma. 

      E ela também passa por transformação. Ao final, veste claro, solta o cabelo e senta-se no chão para conversar com Brenda, igualadas. Bem antes, ao se conhecerem, passavam seus lenços pelo rosto, após terem se separado de seus maridos. Lágrimas ou suor? 

      O título do filme em inglês diz Out of Roseheim. Jasmim tinha que sair de Roseheim para expressar o potencial que surgiu em Bagdad Café? Na verdade, sobram perguntas sem respostas. O que significa um ciciar de cobra? Brenda nunca saberá como uma cafeteira pôde chegar a seu estabelecimento com o nome da estrangeira que veio se hospedar com ela. Os mistérios pairam em meio ao nada, ao deserto.   

      Mas, deve haver um motivo para tudo, assim como há uma explicação para a duplicação do sol no céu e para o boomerang nem sempre voltar a seu destino.    

      A confissão da tatuadora a todos de que vai embora por haver harmonia demais no lugar é apenas mais uma cena meio absurda. Às vezes realista, muitas vezes surrealista, o diretor do filme nos cutuca e desafia o tempo todo.    

      Um final feliz não nos tira a inquietação. A trilha sonora e os efeitos da fotografia são apenas dois aspectos, entre muitos outros que nos oferecem imagens que permanecem e nos fazem pensar. Uma flor ou fruto na mão de Jasmin,a auréola em sua cabeça na pintura de Rudi Coxx, suas pernas a correr pelo boomerang, leves.  E a nossa imaginação completando o que pode ser percebido por trás de tudo isso, uma harmonia imensa dando sentido a tudo e para todos.      

      O diretor nos diz “Sim, no meio do deserto, com mínimos recursos, é possível construir harmonia”.  Isso é da ordem do mundo, é da ordem do amor.