quinta-feira, 30 de abril de 2015

SALAMANCA, CRÔNICA DE VIAGEM

Visitei  Salamanca na Espanha em março último. Esperava encontrar um pouco de história e da cultura hispânica.Tudo foi além das expectativas. Saí de lá com imagens renitentes. Sim, viajar é coletar imagens. E com elas, fazer o quê?

A CIDADE DOURADA DE SALAMANCA

dscn0924_-_a_edit__1_.jpgChegar à cidade de trem, perto das cinco da manhã me colocou em contato com os jovens que ainda celebravam a noite comprida de quinta-feira, dia de festas. Coisas de cidade universitária. Jovens em pequenos grupos, com cara de sono, falando muito e se deslocando aparentemente sem rumo pelas ruas em volta da Praça Maior. 

O hotel pequeno e bem localizado ainda mantinha as portas fechadas. Enquanto esperava hospedagem e conforto, achei um pequeno comércio 24h OPEN assediado pela viajante cansada e pelos estudantes necessitados de alguma comida ou bebida. Grupos heterogêneos se revezavam na madrugadinha gelada, com casacos pesados, brilhos, meias coloridas e cabelos desalinhados. Era fim de festa, com chocolate grosso, pizzas e churros. Eu me alinhava nesse cardápio enquanto sonhava com a cama. 

Por perto, a Praça Maior não fazia questão que o dia acordasse e parecia ainda maior escancarando suas fileiras de janelas para o céu escuro. Meus olhos estavam sedentos por fragmentos de luz de um dia por chegar. O que veio depois dessa madrugada valeu esses momentos modorrentos.  

No dia seguinte, me deparei com um imenso conjunto arquitetônico, que mostrou meu minúsculo tamanho perante a urbe, um museu de arte nouveau e decô de fazer inveja a qualquer parisiense e a universidade. E também lojas de presunto ibérico, com suas peças penduradas em araras aos montes, que me fizeram lembrar meu pai. Elas ainda me perseguem em sonhos pela fartura generosa.

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Ainda encontrei uma ponte do século I, resquício do império romano, pois Salamanca carrega vinte e seis séculos de história. Ela é chamada cidade dourada porque suas construções são feitas em pedra arenosa que oxida com o tempo dando-lhe um tom amarelo. É um conjunto impressionante de prédios. 

A Catedral, a Casa das Conchas, os prédios da universidade e a Praça Maior.  A universidade tem sido ao longo da história o cerne dessa cidade, pelas pessoas ilustres que estiveram em suas bancos e por tudo o que ouvi dela. Ela me relembrou sobre as questões de educação, de conhecimento, de formação do indivíduo. Para quê mesmo se formaram as universidades?  

Desde sempre, protegida pela nobreza e pelo clero, ela teve uma importância difícil de entendermos a partir de nossa perspectiva. Na contemporaneidade o conhecimento se fragmenta pelas redes virtuais e não se detém nas mãos de ninguém. Hoje em dia, as universidades são referências parciais e não mais únicas do saber e do poder que ele promove. 

E o guia, com paixão, ia contando ao grupo como funcionava a universidade buscando meus olhos, e não só os meus, como se assim quisesse garantir sua audiência. Ela se estabeleceu ainda nos últimos séculos da Idade Média, quando o "trivium" e "quadrivium", as artes liberais, formavam o ensino. Não havia o conceito de escolaridade obrigatória e a educação era somente para os homens, aspectos de um universo de prioridades de que não imaginamos os contornos. A universidade de Salamanca foi fundada em 1218, há oito séculos. 

Outros detalhes nos colocam dentro do clima de uma vida acadêmica em que a formalidade era fundamental, especialmente na fase das avaliações. Hoje em dia, perdemos o valor dos exames como rituais, que são também passagens marcantes no crescimento pessoal. 

Os exames finais aconteciam na capela. Estar "encapillado" era estar fechado e concentrado para estudo. Os alunos recebiam três temas marcados, vinte e quatro horas antes dos exames realizados em latim na capela de Santa Bárbara. As pessoas aprovadas nos exames finais comemoravam tal fato com presentes e festividades para a comunidade social e acadêmica: pagavam jantares, propiciavam corridas de touros, missas especiais e outros. E havia ainda outra e definitiva marca da graduação: o aluno que ganhava o grau da universidade tinha seu nome escrito nas paredes da instituição com uma tinta especial feita de azeite, sangue e óxido de ferro. Em letras desenhadas e em tipo manuscrito vemos ainda hoje resquícios dos nomes distribuídos nas paredes como um marketing adequado à época, fazendo a divulgação do feito enobrecedor tanto para a pessoa como para a instituição.

Essas histórias com certeza se sustentam por entre as pedras douradas. Estão guardadas nos prédios monumentais que formam o desenho da cidade. Uma frase citada pelo guia merece seu lugar aqui : "A pedra é a memória das cidades".  

E todas essas imagens se sobrepõem em um caleidoscópio formidável, um tempo de permanência, como se pudessem assim impedir, pelo menos neste momento, a perda inexorável da experiência. Por que motivo tais imagens se alongam dentro de mim e não vão embora? Por que Salamanca me impressionou tanto? Terá sido por causa das histórias do guia cujos olhos brilhavam?  Porque a cidade acordou minha memória hispânica, a figura de meu pai, minha vida acadêmica? Ou por causa da cor expressiva das pedras? 

Houve um diálogo entre as experiências vividas e conteúdos internos de minha vida. Como nos encontros de amor, apaixonei-me. O olhar brilhou, o coração bateu mais forte.  

dscn0935_-_a_edit__1_.jpgAs bandeirolas das confrarias na Praça Maior me pareceram muito coloridas, a procissão católica, comemoração da Semana Santa que se aproximava, me fez rezar o Pai-Nosso em minha língua portuguesa, em descompasso com o castelhano. O pente típico e véu de uma mulher que estava acompanhando as rezas e cantorias, com sua vela acesa entre as mãos, me deu vontade de dançar uma sevillana. Como se eu pudesse mesmo sem saber como. 

Hoje, todas essas imagens ganham liberdade. Refaço as experiências como aluna da universidade que encontrou uma rã pelo caminho, o que segundo as lendas dos estudantes de Salamanca, é sinal de sorte nos exames. Sinto-me como uma espanhola que dançou uma sevillana na festa com os alunos que comigo estiveram na loja 24h. E foi como se eu tivesse acompanhado a procissão comendo presunto ibérico com pão. 

Não, a ordem da experiência não foi assim. Mas poderia ter sido, se eu quisesse de novo construir assim minha viagem. Porque é neste novo momento que as imagens da memória reconstroem os significados. Ela se recriará a cada novo momento até que a memória se perca ou até que outros significados engulam estes. 

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Viajando, coletamos imagens que às vezes permanecem, mostrando aspectos desconhecidos de nós mesmos. Talvez para encontrar coisas e significados esquecidos dentro de nós. Na verdade, viajamos para nos encontrar. Talvez para encontrar coisas e significados esquecidos dentro de nós. 
Foi assim com Salamanca, que estava esquecida em algum canto de mim. 



O que achou? Adoraria saber sua opinião. Deixe seu comentário:


quarta-feira, 22 de abril de 2015

NOVIDADES SOBRE MÁRIO DE ANDRADE


Recentemente foi veiculada a notícia da descoberta de uma gravação inédita da voz de Mário de Andrade (1893-1945). Ouvir sua voz pela primeira vez é um feliz achado. Por outro lado, sabemos que ele será o autor homenageado na FLIP deste ano em julho, em Paraty/RJ.  A festa literária de caráter internacional faz-lhe mérito no ano em que se comemora 70 anos de sua morte, com publicações e estudos a seu respeito.

Mário de Andrade é conhecido por sua obra Macunaíma, pela poesia de Paulicéia Desvairada, pela participação na Semana de Arte Moderna de fevereiro de 1922.



Mas, ele fez muito mais. Além desses papéis que o identificam como personagem de importante momento da história literária, ele também atuou como pesquisador da música tendo viajado por várias regiões do Brasil, com esse propósito, desenvolveu programas de educação para órgãos oficiais e desenvolveu uma intensa relação com o meio intelectual brasileiro, trocando um número imenso de cartas com escritores e colegas (com Carlos Drummond de Andrade e Manoel Bandeira, por exemplo) e pessoas que o procuravam como aconselhador e mestre.

Casa de Mário de Andrade na Barra Funda
O local em que Mário de Andrade viveu em São Paulo, no bairro da Barra Funda, que tem abrigado uma casa de cultura, está sendo reformada e será também um micro-museu e espaço para peças e eventos.  
Sempre bem-vindas novas notícias a seu respeito. E movimentações no mundo da cultura.

Precisamos muito dessas ações.
Precisamos da veiculação de notícias de homens que tenham obras e exemplos para serem homenageados.  
       


PS: Para ouvir a voz de Mário de Andrade, acesse: 
http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2015/04/1618837-gravacao-rara-reproduz-a-voz-do-poeta-mario-de-andrade-pela-primeira-vez.shtml?cmpid=facefolha

quarta-feira, 15 de abril de 2015

SEMEANDO CONSCIÊNCIA

Quando vi a chamada para o primeiro congresso de astrologia do Chile, percebi que não poderia perder a oportunidade de participar desse evento. Depois, veio o convite de Vanessa Guazzelli Paim (obrigada!), a presidente da CNA (Central nacional de Astrologia) para escrever a notícia a respeito dele.

Daí o texto abaixo que traz algumas informações do evento e considerações sobre a astrologia do Chile.    

Semeando consciência

“Lo que mas puedes ser... es ló que eres ahora.” Carta XXI- O MUNDO
“Si te mueres... no te pierdes nada.”Carta XIII- A MORTE
Aníbal Buscañán

Esse lindo título foi o mote do primeiro congresso de astrologia no Chile, em Santiago, de 7 a 9 de novembro de 2014.

Eram cerca de 250 pessoas astrólogos profissionais, estudantes e leigos interessados no assunto reunidos na Universidad del Pacífico, hospedados pelo setor de Psicologia da academia.

Os três organizadores Pablo Flores Laymuns, Mônica De Simone Paoletta e Ximena Brajoviv Estellé trabalharam ao longo do ano, por muitos meses até poder comemorar seu feito realizado com sucesso.

Além dos astrólogos chilenos foram convidados dois internacionais (Vanessa Guazzelli Paim do Brasil e Jorge Serrano do México). 

A abertura foi feita por um xamã mexicano, D. Lauro, que em linguagem de sabedoria, nos relembrou que “somos todos estrelas”. Depois dele, Aníbal Bascuñán abriu o congresso com Filosofia Astrológica utilizando como ilustração cartas de tarô desenhadas por ele de forma criativa, bem humorada e desafiadora.

Entre o sábado e o domingo outros palestrantes se apresentaram em áreas variadas da astrologia: Ana Maria Quiroga e o método Huber; Jorge L Serrano e Quíron; Edgard Pérez e o Quadrado-T; Cristián Rupaillán e as gerações astrológicas; Vanessa Guazzelli Paim e Lilith; Gonzalo Pérez e os “Trânsitos atuais e sincronia com o grande salto coletivo”; Pablo Flores e os relacionamentos; Karin Ostertag e a energia feminina no mapa. Houve ainda temas ligados a abordagens contemporâneas em que se observa a mescla de áreas, tais como a Astrologia Védica (Ricardo Bravo),a Cabalística (Alejandro Lagos) e  Ancestrologia (Pedro Engel).

Foi uma surpresa para os organizadores a acolhida que o evento recebeu do público que estava comovido e satisfeito pelo que tinha vivenciado.

E também pela acolhida simpática do mais importante jornal do Chile, El Mercuryo que publica em primeira página a notícia do evento.

Os três organizadores tinham como objetivo dar um lugar à astrologia fora do misterioso e  inacessível, trazendo-a para mais perto das pessoas e  reunir a comunidade,  abrindo possibilidade de contatos e trocas de conhecimento. Semear a consciência era o mote e tema do evento trazido por Monica que foi desenvolvido pela equipe de forma feliz. 

Os objetivos delineados foram alcançados, pois parecia que todos estavam esperando por ele.  

 
razões e significados do primeiro congresso de astrologia do chile 

Todos concordam: foi um evento histórico. Mas, por ser o primeiro em 2014, coloca-se uma pergunta. Por que somente agora se realizou um evento dessa natureza no Chile? Essa estranheza se coloca quando sabemos que inúmeros profissionais têm mantido grupos de estudo e escolas na formação de astrólogos. 

Tive oportunidade de conversar com vários astrólogos a respeito do assunto: Cristian Rupaillán, Gonçalo Perez, Ricardo Bravo, Paulina Peñafiel, Pablo Flores, Aníbal Bascuñán. Entre as opiniões pude ouvir que a astrologia chilena amadureceu. Em épocas anteriores, há cerca de dez anos, por exemplo, houve tentativas frustradas. Houve reuniões entre os astrólogos com essa intenção que não chegaram a realizar encontros de maior amplitude.

Há também a questão política do contexto chileno que poderia ter marcado gerações anteriores com sérias consequências. No Chile tais situações históricas tiveram um caráter mais severo e permanente do que no Brasil. O medo e a repressão podem ter sido responsáveis pelo impedimento de mais fácil e ampla comunicação da astrologia junto ao público.

Observa-se na sociedade chilena certa rejeição e descrédito à astrologia, senão, como explicar que os Florais de Bach tenham chegado recentemente com aceitação e sucesso rápido?

Ainda contamos com os dados do mapa do Chile que fala de um povo que resguarda a vida privada com discrição. Há uma atitude de cuidado com esse tipo de informação.

Mas, mesmo se considerarmos que o povo chileno tem tais características, alguma coisa está mudando em relação à aceitação da astrologia. Um sinal forte para isso é a notícia do evento em primeira página no jornal El Mercuryo, um dos mais importantes do País.

O primeiro evento demorou a acontecer. Lideranças novas livres de todo tipo de comprometimentos surgiram trazendo energia e dando estrutura à experiência dos antigos. Depois de um trabalho silencioso – um vazio aparente -, ocorre este congresso trazendo à luz uma força ainda desconhecida da comunidade astrológica.

E, talvez ele tenha chegado em momento de amadurecimento da classe astrológica que poderá a partir da continuidade desses encontros, construir uma sustentação útil para todos os profissionais da área. Tal permanência contribuirá para a formação do profissional, para a elaboração de um corpo de pesquisa e para o desenvolvimento do conhecimento que tem a marca do Chile e que merece ser compartilhado mais amplamente.

E, indo um pouco mais longe, talvez essas condições de desenvolvimento no Chile possibilitem aspectos específicos na qualidade da astrologia chilena. Esse tipo de abordagem só tem sido possível a partir de agora com a ajuda da tecnologia e da observação das astrologia nos vários países e regiões.

Assim inaugurou-se a era dos eventos em Chile: com público considerável e uma aura de real harmonia entre os participantes.

Que os objetivos alcançados sirvam para congregar a comunidade astrológica do Chile, em todas as suas possibilidades, no respeito a todas as diferenças e no fortalecimento da astrologia.       


quarta-feira, 8 de abril de 2015

BIRDMAN, DO SUPER-HERÓI AO MITO

Leonard Nimoy, o Dr Spock na série Star Treck, escreveu uma autobiografia chamada I am not Spock (eu não sou Spock). O título da autobiografia é quase um grito de liberdade de Nimoy em relação a seu personagem famoso. Para ele deve ter sido difícil carregar a fama de sua personagem. 

Em alguns aspectos, isso também acontece com a personagem de BIRDMAN OU A INESPERADA VIRTUDE DA INOCÊNCIA. O filme nos traz esse assunto e outros. Siga o texto.
REALIDADE E FICÇÃO
Este lugar é horrível. Nosso lugar não é nesta pocilga.

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Essas são as primeiras palavras ditas pela consciência da personagem que  podem se referir ao teatro da Broadway comparativamente a Hollywood. Podem se referir também ao mundo real em relação ao dos super-heróis. Qualquer que seja a interpretação é uma pista de que algo não vai bem. E essa crise é o que move a história. 
O filme de Alejandro Gonzalez Iñarritu (2014) que foi vencedor de muitos prêmios do Oscar 2015 apresenta técnica cinematográfica inovadora, atores impecáveis e roteiro de tirar o fôlego. A trilha sonora é baseada no som de uma bateria, elemento importante na formação do clima intenso da narrativa. O músico Antonio Sanchez (participação no Pat Metheny Group) confessou a dificuldade para chegar ao som que o diretor queria: uma trilha sonora inteiramente criada na bateria. Iñarritu desejava algo espontâneo, muito jazz e sujo, sem planejamento. Antonio Sanchez conseguiu. De forma impressionante cria o som adequado aos corredores do teatro St James Compatível com a técnica da câmera do diretor.
A história nos traz um ator Riggan Thomson (Michael Keaton) que já viveu a popularidade como um super-herói (Birdman) e se negou a fazer o quarto filme da série. Na verdade, agora ele busca algo que não teve como super-herói, algo além da fama: quer reconhecimento. Para tanto, Riggan escreve e dirige uma peça que, ao longo do filme, passa pelos últimos ensaios.
Junto a esses momentos antes da estreia, podemos observar o cenário da indústria cultural, das celebridades e da exigente (e irresponsável?) crítica especializada de Nova York.  Ainda assistimos às situações de vida das outras três pessoas envolvidas na montagem, do assessor de Riggan, da filha dele recém-saída de uma clínica de recuperação de drogas e de sua ex-esposa.
Esse conjunto de pessoas parece uma multidão em meio a um cenário pequeno: um teatro em um quarteirão central de NY, camarins em corredores estreitos que se alongam em tomadas cheias de sons de uma bateria que mantém o ritmo alucinante de uma câmera que percorre tudo sem um corte, ou seja, é tudo um só plano sequencia. 
Além disso, temos particularidades da personagem Riggan que inicia o filme levitando e movimenta objetos com sua força mental. Podemos nos perguntar se se trata ele mesmo de um super-herói, visto que tais características de comportamento não são comuns a simples mortais.
Além dessas estranhezas, a personagem é acompanhada o tempo todo por uma voz  que chega a ganhar corpo, o de sua personagem heroica, o Birdman. Formam uma identidade dividida e em crise. Riggan não consegue calar essa voz que o incomoda e que ele insiste em negar até com violência.
Nas resenhas a respeito desse filme encontramos alguns qualificativos tais como: humor negro, transgressor, ácido; diálogos sarcásticos, fortes. Filme em ritmo nervoso. Eu acrescento: inconformidade, insatisfação, crise aguda. Momento de tensão máxima antes da estreia da peça de teatro em que se pergunta a respeito do que é amor. E a personagem do palco, ao tomar contato com a falta de amor, diz que ele mesmo não existe, pois não é relevante para ninguém. Mas, é assim também, o momento de vida de Riggan com complicações emocionais de toda a ordem, confundindo  reconhecimento com amor. Ele conseguirá o reconhecimento profissional que deseja? Isso resolveria sua crise?     
DO MITO À REALIDADE 
birdman_2_mar15_-_copia.jpgRelacionar o super-herói ao mito de Ícaro não é heresia. Essa é uma perspectiva possível e sofisticada, uma complexidade que só um grande filme nos oferece. São muitos os níveis de significados porque são inúmeras metáforas e cenários para as representações real  (a de Riggan) e fictícia (a do palco). Em meio a elas nomeia-se o grego Ícaro. Bolas de fogo correm o firmamento em direção ao solo. Seria uma representação da queda de Ícaro? 
         

Dédalo e seu filho Ícaro precisam sair do Labirinto em que se encontram. O pai, que representa a inteligência prática e também o artista universal, ou seja, de muitos talentos, realiza asas para os dois voarem. Dá asas e a advertência para que seu filho não se aproxime do sol. Em vão. Ícaro é imprudente, a cera derrete e ele morre nas águas do mar. 
Dessa forma, além de ser um símbolo do desejo humano de voar, Ícaro é também o intelecto tornado insensato, a imaginação perversa, uma doença desmesurada e temerária do espírito. Assim o dicionário de símbolos de Chartier e de Gheerbrant conceitua esse mito. Assim podemos conceber nossa personagem: vaidosa e temerária. 

As personagens do filme fazem parte de uma tragédia. Tudo é fatal e intenso. Os apertados camarins e infindáveis corredores do teatro são o labirinto do Minotauro em que elas se perdem e se encontram. Sufocante. Um rumor um som de bateria alucinante acompanha os passos de todos. Refaz-se uma história mítica, de um ser aprisionado querendo ultrapassar os limites da natureza do humano. Estar no labirinto é viver a vida como ela é. Quem deles se apercebe disso? Ainda pode acontecer o desejo de liberdade. 
Riggan é um Ícaro desejando ser livre, mas dividido entre seu momento presente e o passado que lhe cobra fidelidade. Ele se encontra em uma encruzilhada. Entre o desejo de reconhecimento (narcisista) e a sensação de solidão de sua personagem na peça que encena. 
Ao querer dar o salto de Hollywood à Broadway, de celebridade popular ao reconhecimento no teatro terá ele extrapolado seus limites? Todo o trabalho mental e corporal não o protege da turbulência. Qual será o pecado trágico do arrogante e destemido Riggan? 
Cansado por lhe parecer que a paz é impossível, desiste. Em estado de calma, ele conversa com a ex-esposa para lhe fazer a confissão de amor. Daí, entrega-se à morte. Nesse momento, no palco em que ele se encontra caído, assistimos a uma dança em que se misturam a banda e outros super-heróis. É uma festa de sonhos humanos de superação. 
Mas, após esse momento de dor imensa, acordar tem outro sentido. A crítica do jornal é surpresa bem-vinda, o aconchego da filha e presença da ex-esposa são a resposta para a pergunta da personagem que Riggan encarnou no palco. Tudo se assenta em sua vida ao mesmo tempo. E ele, não mais em crise faz o que lhe cabe, pois tem o dom: ele é o herói de sua vida. Daí então, ele pode ser o super-herói, pode encarnar a mais pura essência de Ícaro sem ter as asas derretidas pelo sol. 
birdman_3_roman_portillo_mar15_-_copia.jpgFoi preciso suportar a morte para atingir outra percepção em que ele recupera Birdman como algo próximo e impresso em sua alma, como um mito a ser celebrado. Ele pode agora olhar os outros á sua volta com atenção tendo o sonho vivo no alto. O reconhecimento que dá sentido à vida parece ser o amor.
Talvez seja essa realização de amor (e de entrega) em vários níveis a inocência prometida pelo título do filme. Ela é inesperada e surpreendente.


A cena final nos dá o olhar da filha a compreender a aventura de seu pai. Um olhar com alívio e alegria de juventude. Uma cumplicidade, um conluio entre duas inocências. Mantém-se o sonho do herói.
   
É um filme para fortes. Fortes e sonhadores.
  
PS: Leia o artigo sobre outro filme da série 2014, com indicação de melhor atriz, DOIS DIAS E UMA NOITE, em que há a descrição de uma experiência difícil mas que, quando enfrentada, nos dá um lindo presente: