sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

DAVID BOWIE, COERÊNCIA ENTRE VIDA E OBRA



Nascido Capricórnio (08 jan1947, 09h, Londres), David Bowie sempre foi conhecido pela obstinação em seu trabalho e pela busca de expressão: Sol em Capricórnio e casa cinco ativada pelo regente do Asc Aquário.

Esse Ascendente e seu regente Urano no signo de Gêmeos talvez sejam o lado mais visível do mapa de David Bowie pois indicam a versatilidade criativa que o caracterizou.  Além do Asc, ele expressou intensamente sua Lua em Leão na casa sete. A quantidade de personagens e performances teatrais são a marca desses aspectos. Mas há uma conjunção dessa Lua com Saturno e Plutão. Essa conjunção indica um lado difícil do ponto de vista emocional do qual ele não poderia fugir. Veremos como isso pode ter marcado sua obra e vida.

Do seu mapa, também chama atenção a conjunção na casa doze de Sol, Marte e Mercúrio, que pode indicar a timidez que ele demonstrou em muitas entrevistas. Ele se escondia atrás de muitas personagens? Pode ser também indicativo da maneira como ele viveu sua doença final e a morte. Ter escolhido viver essas experiências em total privacidade é expressão inequívoca de sua casa doze.

A análise de alguns de seus trabalhos nos oferece outros dados da força que tinha os movimentos emocionais na construção de sua obra.

No álbum de 2013, The Next Day, ele retoma o trabalho de 1977, Heroes da época de seu retorno de Saturno.

Houve uma adaptação da capa desse álbum anterior que é coberta com um quadrado branco e recebe um traço no título Heroes. Esse álbum foi um dos três produzidos por ele em Berlim entre 1976 e 1979.  Lá ele procurou permanecer no anonimato tratando da cura das drogas. Retirar-se foi uma decisão saturnina e típica do seu Sol de casa doze também. Ele sabia que tinha que resolver sua situação e mudar algo na vida. Era essa sua proposta no retorno de Saturno.

Na capa do trabalho de 2013 dentro do quadrado branco ele acrescenta a inscrição The Next Day que cobre grande parte da capa do disco de 1977. Estabelece-se explicitamente uma relação entre essas fases. O passado de 1977 passa por uma revisão em 2013 em que há uma espécie de negação do antigo e uma esperança pelo que vem no novo dia. Além disso, o traçado na palavra Heroes indica que a ingenuidade de ser herói como em 1977 não é mais possível em 2013. É relevante essa reescrita da fase do retorno de Saturno.

Em 2013 a imagem de Bowie no vídeo é contemporânea e despojada de roupas ou maquiagem especiais. É a imagem de si mesmo, sem performance. Em 2012 e 2013 ele passa por trânsito de Plutão no Mercúrio, regente da casa cinco. Netuno quadra Vênus e MC, Urano (em 2012 até primeiro semestre de 2013) faz um grande trígono com Lua e Vênus/MC, em 2013 constrói um T-Quadrado com Mercúrio e Netuno já mobilizados pelo Plutão nessa fase.

Esses trânsitos dos planetas lentos (Plutão, Netuno e Urano) por Mercúrio e Vênus/MC devem ter modificado suas referências de comunicação e imagem pois no vídeo de 2013 ele surge como ele mesmo, sem criar personagem. Grande decisão e, com certeza, transformação na maneira de ele encarar sua imagem. Mais às claras? Menos tímido? Mais força pessoal? Nunca poderemos ter certezas, mas cabe a nós levantar hipóteses a partir dos planetas implicados em tais trânsitos (Mercúrio e Vênus/MC).

Independentemente dessas hipóteses nunca poderem ser confirmadas, esses momentos analisados são passos de sua vida e carreira que manifestam a consistência de seu trabalho. Também o último trabalho confirma essas relações entre mapa e construção de sua obra.

Em 2013, ele já experimentava o trânsito de Plutão na casa doze em conjunção com Mercúrio e que ficou mais intenso quando mobilizou o Sol e Marte o que ocorreu nos anos seguintes, os do desenvolvimento de sua doença que durou cerca de ano e meio. 

Mesmo doente, ele ainda teve energia para criar mais uma de suas personagens. Como Plutão é também o barqueiro do rio que nos conduz para a última morada, a personagem da vez nos lembra o desapego da morte. Da Bíblia veio a inspiração para ser Lázaro com a representação do tema da ressurreição. Ele deixou o álbum Blackstar e o clip Lazarus como trabalhos finais, expressando o papel que lhe cabia: o desapego do corpo com a conotação de uma despedida, um desligamento da vida material, mas também com a promessa de ressurreição.

A suspensão de sua obra pela morte repentinamente notificada ao público surpreendeu a todos. Mas, para nós astrólogos, faz sentido esse desejo de privacidade (casa doze). E pelo que levantamos no estudo dos trabalhos escolhidos, esse último álbum e vídeo chegam expressando suas experiências emocionais o que sempre ocorreu como pudemos observar em alguns deles: Lua em conjunção com Saturno e Plutão.


David Bowie foi assim coerente em relação à construção de sua biografia e obra. Grande na carreira e na vida. 

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

A FORÇA DESSAS MULHERES, DE TODAS AS MULHERES


Ilú Obá De Min significa
mãos femininas que tocam tambores para o Rei Xangô
        


foto_menor_3_fev16.JPGNa sexta-feira, 5 de fevereiro, fui conhecer um bloco de carnaval Ilú Obá De Min composto de mulheres e de aspectos da cultura africana. Ainda assisti ao show de Elza Soares. Na praça da República e arredores, o meu povo queria com eles festejar o carnaval e a alegria. Acompanhe essa festa.  



ILÚ OBÁ DE MIN

Eu já vira fotos e já tinha ouvido falar desse bloco, que iniciou em 2004 a partir de um grupo de arte e cultura negras. E ele cresceu.

Hoje além do bloco, é instituição que desenvolve atividades de formação e pesquisa sobre a matriz africana, sem ligação com religiosidade mas com o foco nas histórias dessa cultura. Também se preocupa com as questões femininas e, a partir da arte, tem como objetivo o empoderamento da mulher, o enfrentamento do racismo, sexismo e de todo tipo de discriminação. Ele busca inserir nos espaços urbanos antigas tradições restabelecendo o contato da população com elas. E surge, então, a importância do carnaval de rua, com um desenho diferente e especial, pois a rua é o local privilegiado para essa e todas as aproximações.

O bloco se constitui de várias alas. Há a bateria composta de duzentas e cinquenta mulheres que tocam instrumentos variados: alfaia (uma espécie de tambor), agogô, djembê, xequerê. E há outras alas, como o corpo de baile, o ayê, que representa uma corte em desfile, na verdade uma corte africana de reis e rainhas. E há ainda os incríveis pernas-de-pau que não se relacionam com os circenses como nós os conhecemos. Eles são uma tradição na cultura africana, chamados orun (céu) e representam forças de planos superiores. Garantem com esse contato divino que as cerimônias atinjam outra magnitude.

Nesse contexto incluem-se reflexões sobre a identidade da cultura brasileira. Quem poderá se esquecer da contribuição enriquecedora da tradição africana em nossa cultura e história? Com a presença desse grupo Ilú Obá De Min poderemos até nos perdoar da tristeza infringida à população de escravos que aqui chegaram? Talvez isso não seja possível. Mas essa marca histórica será alimento para a nova postura de mulheres encarregadas pela natureza de fazer a roda da vida acontecer cada vez de forma mais livre de máculas. E a postura das mulheres do Ilú fala de novas experiências e de novos horizontes possíveis. E de respeito ao novo que restaura o que deve ser lembrado. O que não pode ser esquecido.
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Nesse propósito de reverência, a cada ano, o bloco homenageia uma mulher com presença na cultura e arte brasileiras. Este ano a escolhida foi Elza Soares. A voz rouca e forte da artista que ganhou da BBC de Londres o prêmio de Cantora do milênio em 2000, lançou no ano passado um álbum denominado A Mulher do fim do mundo. Os principais temas desse álbum são a violência contra a mulher, a negritude, a morte, o sexo. As letras das músicas inéditas cantam esses temas que são o discurso compatível ao do bloco. Suas falas e cantos afoguearam os presentes daquela festa. 

A faixa que dá título ao álbum junto a um trabalho de percussão nos embalou na praça com letra exaltando o carnaval e a avenida, o samba e a dor da vida. Aos 78 anos de idade, Elza Soares sabe ser a metáfora de toda a grandeza feminina e africana. Um limite ampliado de espacialidade, a mulher do fim do mundo.

A RAIZ AFRICANA DESSAS MULHERES

Cheguei à praça munida de guarda-chuva e coragem para enfrentar uma quantidade inesperada de pessoas se espremendo pelas calçadas e ruas do centro da cidade. O sistema de previsão climática não errou. A chuva veio fina e persistente. Mas quem se importa?

Antes de ela chegar, eu pude observar desde a saída do metrô da praça as pessoas com turbantes coloridos e roupas em branco e vermelho que são as cores de Xangô. Esse orixá é lembrado desde o nome do bloco. Ilú Obá De Min significa mãos femininas que tocam tambores para o Rei Xangô. Eu também me vestira de branco vermelho.

Pus-me na praça e vi aumentar o número de mulheres se posicionando na bateria. De calça branca, blusa listrada de branco e vermelho, chapéu de malandro e flor também vermelha no colo. A maquiagem e brilhos faziam parte da beleza e da festa. Era carnaval.
     
Quando o bloco de deslocou para a avenida, presenciei o desfile da música com tambores em ritmos variados e cantos multiplicados pelas vozes presentes. Eu me integrei na melodia construída junto a um cenário, coreografia que este ano vestiu o figurino carioquês da Elza Soares: a malandragem e o samba.

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Acompanhei a saída das alas. O corpo de baile, cantoras e brincantes. Meus olhos com enlevo, não desgrudaram da realeza da corte. Bem de baixo, segui os pernas-de-pau com desejos de alçar um vôo para alcançar seus sorrisos. Os ritmos mexiam com meus nervos e músculos. Dançar era o mínimo necessário naquele momento. Eram sons fortes os que enchiam o espaço e que contavam histórias subentendidas. Pela boca de mulheres contemporâneas eu soube das dores de outras mulheres negras. Só que essas vozes ganharam o dom de tornar o antigo atual, o distante próximo. E as dores se transformaram em cantos de revolta e de libertação, de esperança e de transformação.

Era um movimento de mulheres no carnaval brasileiro. Fortes e presentes. Naquele momento eram todas negras.

Inevitável que em todo esse quadro, algo ocorresse em mim. Não seria possível que eu saísse de lá mais mulher pela história de minha vida de corpo e de sexo.
Mas, sem dúvida, saí de lá mais negra, mais África, mais forte. Na pele e no coração.

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Quebrei a cara e me livrei
Do resto dessa vida
Na avenida dura até o fim
Mulher do fim do mundo
Eu sou e vou até o fim cantar.
A mulher do fim do mundo, 
Elza Soares



quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

O IMPERADOR ADRIANO E A ASTROLOGIA

Interessante saber como a astrologia era percebida por um homem inteligente e de muito poder como o Imperador Adriano de Roma. Acompanhe o texto.
 

No livro Memórias de Adriano, de Marguerite Yourcenar, Adriano fala de seu contato com a astrologia. Vale a pena observarmos como ela era encarada naquela época.

Ele diz: " Aqui convém mencionar um hábito que me atraiu durante toda a minha vida a caminhos menos secretos que os de Elêusis, mas que acabam por lhe serem paralelos: quero falar do estudo dos astros. Fui sempre amigo dos astrônomos e cliente dos astrólogos. A ciência destes últimos é incerta, falsa nos detalhes, talvez verdadeira no todo: já que o homem, parcela do universo, é comandado pelas mesmas leis que presidem o céu, não é absurdo procurar lá em cima os temas das nossas vidas e as frias simpatias que participam dos nossos  êxitos e dos nossos erros. Jamais deixei, em cada noite de outono, de saudar, ao sul do Aquário, o Escanção celeste, o Dispensador sob cujo signo nasci. Não me esquecia de marcar a cada uma das suas passagens, Júpiter e Vênus, que presidem minha vida,  nem de ponderar a influência do perigoso Saturno. "

Vamos à análise de algumas partes do texto: 


1) A astrologia era menos secreta que os mistérios de Elêusis e por isso, possivelmente mais popular.

2) Mas ambos são paralelos, ou seja falavam a Adriano sobre aspectos da experiência humana que eram similares em importância para ele.

3) Ele tinha proximidade e respeitava tanto os astrônomos como os astrólogos. Astrologia já era entendida como profissão no século II em Roma e na Grécia. 

4) A "ciência" da astrologia, entretanto, era analisada por Adriano com certa cautela em sua abrangência. Ele não aceitava "certezas" nem "veracidade" em suas afirmações. “Ciência” era algo diferente do que é para nós hoje em dia.

5) Apesar dessas ressalvas, a essência da astrologia era tida como "verdadeira". 

E o que era essa essência digna de todo crédito?    Ele observava semelhança entre as leis que presidem o território dos homens na terra e os céus, ambos formadores do “universo”.  Havia uma compreensão em que estaria implicado o todo: assim é embaixo como é em cima.  Descobrimos sinais dos princípios de Hermes de Trimegistro nesta frase.  


Na verdade, Adriano era um homem culto e versado em muita leitura. E tinha hábito de levar em conta as observações celestes dos movimentos dos planetas de acordo com seu mapa natal.

A astrologia já naquela época era um conhecimento com presença marcante na vida de quem podia ter acesso a algum conhecimento.




PS: Apesar do texto de Marguerite Yourcenar ser de ficção, ela se apoiou em pesquisa histórica que demandou dela mais de vinte anos de trabalho. Daí, que podemos levar em conta seu texto como apoio para observar a astrologia na vida e época de Adriano.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

FRAGMENTOS DE UMA LEITURA: MEMÓRIAS DE ADRIANO


O livro "Memórias de Adriano" de Marguerite Yorcenar tem texto denso  e poético. 
A cada página temos motivos para parar e reler. São reflexões ricas que nos fazem observar a experiência de vida.
No trecho a seguir, Adriano está descrevendo seu contato com Leotíquides em um curso de medicina em Atenas.

Diz: "Leotiquides tomava as coisas  do ponto de vista mais positivo: elaborara um admirável  sistema  de redução  de  fraturas. Quando  ao entardecer,  caminhávamos à beira-mar, esse homem universal se interessava pela estrutura  das conchas  e pela composição  do  lodo  marinho. Carecia entretanto,  dos meios de  experimentação,  e ressentia-se da  falta dos laboratórios e das salas  de dissecação do Museu de Alexandria  que frequentara na juventude,  do choque  das opiniões e da proveitosa concorrência dos homens.  Espírito positivo,  ensinou-me a preferir as coisas às palavras, a desconfiar  das  fórmulas,  a observar mais do que julgar,  esse Grego  amargo ensinou-me o método. "
 
É  o momento mágico em que se forma o espírito em aprendizagem e contato com o mestre. 

Reli várias vezes  para captar o momento em que Adriano passa do simples relato para o salto em sua experiência  pessoal.


segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

SÃO LUIZ DO PARAITINGA DAS MARCHINHAS


                                           ​Para Isabel Giannotti, grande companheira de viagem

Encravada entre vãos de montanhas próximas ao Vale do Paraíba, um pequeno vilarejo encanta o viajante. Ela se localiza no Estado de São Paulo, mas poderia ser em qualquer lugar do Brasil, variando apenas o sotaque. Aqui, bem caipira. Bem lindo. Se você é turista, dispa-se dos aparatos urbanos e mergulhe comigo na cultura local.

DE MARCHINHAS E OUTRAS MARAVILHAS
SLP_1_menor_tamanho_jan16.jpgEram poucos os dias disponíveis; o trajeto teria que ser curto. O destino já vinha acompanhado de alguma informação: carnaval com toques particulares. Em janeiro, o site da cidade informava um concurso de marchinhas em três finais de semana. Programação perfeita.
Foi bom chegar na sexta e acompanhar o ensaio espontâneo de quem quisesse cantar com a banda no coreto da praça ainda não cheia de gente. A brisa pelo ar e folhagens das árvores poderia ser de chuva próxima?

O melhor viria no dia seguinte. Haveria os blocos pelas ruas em volta da praça e a apresentação de dez marchinhas no festival que é, na verdade, repertório futuro do próximo carnaval.


Mas antes disso, vejamos as personagens da cidade. O médico sanitarista Oswaldo Cruz ganhou um pequeno museu na casa em que nasceu. O músico e compositor Elpídio dos Santos também merece amostragem de seu trabalho. O geógrafo e professor Aziz Ab'Saberz é outra de suas personagens ilustres. Celebrar personagens e suas obras não faz parte da nossa cultura. O que mais havia naquela cidade de pouco mais de 10 000 habitantes?


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Livros grandes de capa dura ilustrados informam o visitante a respeito da história local e de particularidades recentes como a inundação em janeiro de 2010. Tal experiência dramática se acrescenta às histórias dos ciclos de riqueza que a cidade viveu por causa da circulação de mercadorias já que sua localização é providencial, entre o Vale do Paraíba e o porto de Ubatuba (importante durante os séculos XVIII e XIX). Também era caminho para o escoamento do ouro das Minas Gerais, era entreposto de tropeiros e, um pouco mais tarde, ainda foi posto de abastecimento de produtos básicos como milho, feijão, arroz, fumo. Era o celeiro do vale.


Até que com a chegada do café já no século XIX surgiu uma nova classe social, a elite dos senhores do café, da política e até da cultura literária. Com o final do ciclo do café que foi para o sertão de São Paulo, aconteceu um ciclo de comércio e uma redução da economia. Já no início do XX, aconteceu a pecuária leiteira. Atualmente, a cidade recebeu o título de estância turística desde 2002.


O que chama nossa atenção é a rápida superação da inundação do rio que nos remete, com certeza, a um conjunto de muitas forças. Depois de seis anos, a reconstrução da cidade chega a quase noventa por cento.


Mas mais bonito ainda é a manutenção de suas manifestações de cultura popular e folclórica pela população. Quem saberia contar essa parte? Ela gerou ao longo do tempo uma série de blocos e de marchinhas, de festas pagãs e religiosas.


São mantidas vivas danças como a congada, a catira, a caiapó e a dança das fitas. Rituais como a cavalhada a congada e moçambique. Festejam-se a folia de Reis e a festa do Divino. Lambuzar-se de tudo isso nunca será demais.


O carnaval esteve um tempo suspenso por proibição religiosa. Quando pôde reaparecer no início da década de 80, a demanda reprimida devia ser grande, pois ele renasceu forte. Logo vieram o casal João Paulino e Maria Angu, dois bonecos enormes e outros. E os blocos, a começar pelo Encuca a Cuca, que é uma personagem sobrenatural e meio mágica para desencaixar a cabeça das pessoas. Um carnaval inteligente cheio de mitos, lendas e personagens, de teor irônico e conteúdo crítico.
A PONTE E AS SERESTAS
De posse dessas informações segui para as ruas da cidade com outros olhos. No dia seguinte, no sábado à tarde, segui os blocos Burrico do Vovô e o bloco da Minhoquinha, ambos com banda, pessoas fantasiadas, bonecos enormes e o estandarte abre-alas.


       
SLP_4_menor_tamanho_jan16.jpgÀ noite, a praça se enfeitou de fitas, máscaras e luzes. Era muita gente, famílias com muitas crianças e grupos de jovens esperando a apresentação de dez marchinhas marcada para as nove e meia da noite. Mas só começou perto das dez e meia porque foi a hora que acabou um casamento na igreja matriz em frente ao palco no coreto da praça. A festa pagã cedeu lugar ao respeito pela religiosidade. Como visitante da cidade acomodei-me ao costume do lugar. Fiquei pacientemente esperando a cerimônia acabar.


Essa particularidade regional (falta de profissionalismo?) devia fazer parte de um quadro maior em que talvez caibam os critérios próprios de sobrevivência dessa população. Ela passara por destruição e caos. Quem pode avaliar a importância da fé? Ou a resistência do pároco? Não cabia crítica, mas fiquei curiosa. Talvez houvesse coisas que eu ainda não havia percebido.

O capítulo da inundação é marca da capacidade de resistência. Mas, suponho também que essa cultura popular é um caldo que sustenta a manifestação desse povo. A incorporação desse repertório pode ter sido alimento para a capacidade de superação do desastre das águas. Havia muito mais a preservar do que o patrimônio visível e concreto das construções. Deve haver um orgulho escondido em todos os habitantes, uma marca do heroico fundamentado no quadro das manifestações culturais.


Daí então, a partir dessa hipótese, segui o festival com outros ouvidos. As marchinhas vinham de várias localidades muitas vezes acompanhadas por torcida organizada. Iniciado em 1984, ele segue seu objetivo de divulgação e manutenção de uma tradição local.


Saí da festa antes da seresta começar pelas ruas da cidade. Pena. Era tarde da noite e começara uma chuva fina. Faltou essa experiência.


No meio do caminho tinha uma ponte branca de pedestres. Ela separava a parte histórica do lado de lá. Era estreita e iluminada por postes altos, sobre aquele rio que um dia enchera demais ocupando mais espaços do que lhe cabia. Passando por cada um dos postes eu ia ouvindo sons de serestas. Como todas as serestas são igualmente lindas, as recordações de outras de outros tempos, da minha saudade, se juntaram à desta noite.

Outros fragmentos desta viagem iam surgindo entre os sons que eu parecia ouvir. Eles se encheram de águas do rio Paraitinga e de sotaque caipira. Havia marchinhas de carnaval e bonecos gigantes. Havia uma igreja na praça se erguendo branca e respeitosamente deitando sua sombra sobre a praça e o coreto. Nas barraquinhas havia roupas feitas de panos quadriculados em amarelo, azul e vermelho e outras com bordados de miçangas. Havia sorvete de frutas e queijo especial com café.


E esses recortes se alinhavam com a visão insistente da ponte pequena para pedestres sobre um rio que tinha afogado a cidade. Como se ela representasse um limite que eu não queria ultrapassar.


A máquina fotográfica procurou gravar cada pedaço do trajeto percorrido pela última vez até a pousada gentil. Mas, era um andar que carregava a sensação de ter perdido talvez o melhor da festa: a caminhada noturna pelas ruas com violões e vozes emocionadas. Algo de mim ficaria em alguma nota de violão perdida pelo ar fresco da noite ou na voz de um cantador apaixonado ou ainda no olhar de uma moça que da janela vê o amor e a música no portão de sua casa.


Não adiantava tentar resgatar. Nem eu queria. Nem sequer eu poderia.
PS 1 :Em São Luiz do Paraitinga, Pousada Primavera: