quinta-feira, 27 de julho de 2017

A CAMINHO DE PARIS E DO FEMININO

Ana Maria M. González

Eleanor Coppola que é escritora e cineasta conhecida por documentários, resolve fazer um filme de ficção. O que levaria uma pessoa já com expressiva obra desenvolvida a inovar aos oitenta anos? Vale lembrar outros dois cineastas octogenários com filmes recentes: o nosso Domingos de Oliveira com 80 anos dirigiu Barata Ribeiro, 716 e Alejandro Jodorowsky (chileno) aos 88 anos fez Poesia sem fim. Cada um no seu estilo, fizeram filmes com aspectos autobiográficos. Terá ela também desenhado esse caráter subjetivo em PARIS PODE ESPERAR?


NO CAMINHO PARA PARIS






Anne (Diane Lane) é uma mulher bonita em um papel irrelevante em seu casamento com Michael (Alec Baldwin) com quem não tem muito diálogo. Um distúrbio no ouvido a faz aceitar o convite de Jacques (Arnaud Viard) viajar por terra até Paris onde se encontraria com o marido. Essa é a base para o filme PARIS PODE ESPERAR.

Em um carro velho e com problemas, ambos fazem o percurso com muitas paradas para visitas interessantes, entre comidas e muitas taças de vinho. A sedução faz parte do temperamento de Jacques e é aspecto da cultura francesa colocada nesta narrativa intencionalmente ao lado da americana. A diferença entre tais hábitos e preferências culturais é e será sempre tema com possibilidades divertidas.

Jacques, um francês sensível, escolhe locais sempre bonitos de pequenas localidades, com dados históricos ou de beleza natural, pedras centenares e sofisticação gastronômica. Um museu, uma igreja e um especial restaurante. O que mais? Alongar o tempo é preciso. Delicadas surpresas são criadas em um caminho adequado para agradar a mulher bonita que lhe caiu no colo.

Tal contexto poderia até nos frustrar por ser um tanto simples e com alguns clichês. Mas, acontecem pequenos detalhes e uma piscadela que a personagem feminina nos dá ao final do filme. Parece pouco? Só na aparência, pois essa piscadela tem significado. Ela ocorre enquanto Anne saboreia um bombom em forma de rosa, sua flor preferida e observa a correspondência recebida que inclui um maço de notas, que cumpre uma promessa feita pelo galante companheiro de viagem.

Trata-se de um momento único de muito prazer consigo mesma. Um tipo de experiência solitária bastante diferente daquela solidão que ela experimentava no início do filme. E essa piscadela que nos faz cúmplices, surpreende e é um recado da diretora. Da ficção somos remetidos diretamente para nossa realidade. A diretora transpassa limites.

A OBRA EM ANDAMENTO

Eleanor Coppola é conhecida pelo registro do trabalho de seu marido e filhos em documentários, especialmente pelo documentário a respeito de Apocalypse Now em 1991, Hearts of Darkness: A Filmmaker's Apocalypse (junto a outros dois diretores). Por que motivo já octogenária ela se poria a dirigir um filme de ficção? O fato de ser esposa de Francis Ford Coppola e mãe de Sophie Coppola não justifica nada. Poderia até ser um empecilho. Repito a pergunta: o que ela está querendo expressar?

Pode ser um recado para nós, mulheres. A personagem é mimada por um homem gentil no percurso de uma linda viagem, tendo ao mesmo tempo a companhia do marido ao telefone, como sempre distante, porém neste momento enciumado. Será que ele está agora enxergando a esposa?

A personagem vê-se dividida entre um marido para quem tem que cuidar das meias na hora de fazer malas e um possível amante meio desajeitado em questões pessoais. Confuso e às vezes, paradoxal entre telefonemas dissimulados, sumiços idem. Posturas até questionáveis e que podem passar ao largo. Ambas situações com estes homens não são perfeitas. Com uma postura paciente e feminina, ela observa. E talvez tenha se percebido mulher duplamente desejada. Novas oportunidades de relacionamento?

De um lado o marido rico e bem colocado na vida, de outro, o sedutor um tanto enrolado, mas com muitos recursos para tornar cada instante a seu lado uma festa de prazeres. O que essa personagem feminina fará? Aceitará o convite para um futuro encontro com o francês? Recolocará o casamento com um marido mais atento? Largará um ou outro?

Neste momento do século XXI em que muitos feminismos aparecem, em formas antigas e outras mais contemporâneas, nós, mulheres, somos convidadas a nos pensar como parceiras e como pessoas independentes. A personagem observa ao mesmo tempo os movimentos dos dois sem se perder. Que liberalidades ela pode se oferecer junto à certeza de ser ela mesma?

A piscadela de Anne ao final do filme, em meio a um bombom de chocolate e um maço de notas, abre uma cumplicidade conosco como se uma opção tivesse disso feita ou uma compreensão atingida. Não nos é apresentada uma decisão. A pergunta está feita e cabe a nós a resposta.

O filme apresenta sofisticação e encanto. E isso faz a diferença em um universo cinematográfico normalmente cheio de efeitos especiais, bombas explodindo e carros voando. A beleza é um dado fundamental assim como o prazer fundamental para a vida. Em um contexto feminino, Eleanor nos fala possivelmente de sua experiência como mulher, embora não de sua biografia como os dois diretores citados. Pelo menos não explicitamente.

Por tudo isso, não deixem de assistir a esse filme. Parceiras e parceiros, por motivos opostos, todos devem passar por aquela piscadela. Se possível, procurem depois do cinema por uma confeitaria e mordam pelo menos um bombom de chocolate, se possível em forma de rosas. E não esqueçam de compor um quadro na imaginação com alguma imagem de Paris. Esse detalhe fará tudo perfeito.

segunda-feira, 3 de julho de 2017

A INCRÍVEL HISTÓRIA DOS BANQUETES IMAGINÁRIOS

Ana Maria M. González

Tive oportunidade de assistir no festival Ciranda de Filmes (Maio2017 SP) a um documentário que tratava de cadernetas de receitas culinárias elaboradas em campos de concentração. Como assim?, eu me perguntei, quando li a síntese do filme que tinha por título BANQUETES IMAGINÁRIOS. Muito longe de ser ironia, esse documentário me conduziu a descobertas maravilhosas a respeito da capacidade que o ser humano tem de superar um estado de caos e de absurdidade.

O COMEÇO DE TUDO   
 
Tudo começou quando a jornalista e cineasta francesa Anne Georget (1962) entrou em contato com a história de Anny Stern que recebeu no começo dos anos 70 um pacote contendo cartas, fotos, e sobretudo uma caderneta de receitas culinárias de sua mãe, MinnaPächter, falecida em 1944 no campo de Terezin. O pacote foi-lhe passado por um desconhecido. As páginas da caderneta eram delicadas e costuradas de forma frágil. Foram necessários cerca de 25 anos para que essas relíquias chegassem a seu destino.

Impressionada por tal história, a jornalista foi atrás de mais dados, tendo inclusive se encontrado com o neto de Minna nos EUA , David Stern. Escreveu, então, com ElsieHerberstein um livro a respeito do assunto, Lescarnets de Minna, nas ÉditionsduSeuil. E fez um primeiro documentário.

A divulgação desses trabalhos gerou fatos inesperados, abrindo espaço para outras descobertas que se mostraram mais surpreendentes ainda.

Segundo as palavras da jornalista, em janeiro de 2009, ela recebe uma carta de Emile Letertre, que tendo lido seu livro sobre as receitas de Minna, resolveu lhe contar acerca de 470 receitas de cozinha escritas por seu pai Marcel, morto em campo de concentração. De novo, ela entrava em contato com essa estranha união entre campos de concentração e cadernos de receitas. E, desta vez, com o registro feito por homens, o que também era pouco provável.

O gosto pela gastronomia na Europa seria o dado que justificasse esses cadernos de receitas nesses grupos? Esse argumento não se sustentou porque logo apareceram relatos de outros cadernos em gulags russos (campos de trabalhos forçados dos presos políticos) e em prisões de guerra no Japão. O sargento Stewart que Anne Georget encontrou no Alabama (EUA) e permaneceu por três anos e meio em Kawasaki, perto de Tokyo, fez cadernos com listas de sopas, de legumes, de sobremesas, de bombons, de pães. No conjunto que se foi formando dessas cadernetas estão presentes receitas de regiões diferentes, de família, especiais para festas religiosas e sociais, de tudo o que socialmente vivemos à volta da mesa de refeições.

O desenvolvimento natural desse trabalho de muitas descobertas de Anne Goerget a conduziu a outro documentário. Foi esse segundo filme que me moveu a ir buscar coisas na internet e a escrever este artigo. Esse segundo filme é mais completo e com depoimentos de profissionais de várias áreas: chefes de cozinha, historiadores, neurocientistas, filólogos, linguistas e etnólogos. Todos se esforçando na tentativa de abarcar com suas análises e interpretações as prováveis explicações para o fenômeno. Delicado e instigante.

Por que uma literatura desse tipo em situação de guerra e aprisionamento?, se pergunta a pesquisadora. Por que motivo essa ação de memória e de recolha em um contexto de tanto sofrimento por fome? Lembrar receitas é, sem dúvida, coisa que todos podem fazer sem necessidade de formação profissional especial. É um evento universal para homens e mulheres, de todas as idades, de todas as regiões e culturas. Todos temos memórias de comidas, de comemorações à volta da mesa de refeições. Mas, há mais, muito mais atrás desse mistério.

Sustentando o absurdo e o caos

Ao longo dos anos, desde a primeira notícia dos cadernos de Minna, a pesquisadora foi descobrindo outros dados o que tornou tais cadernos objeto de mais amplos questionamentos. Era um fenômeno que se repetia em vários locais e com pessoas de várias culturas e idades. Disse a jornalista:  “Entendi que este era um fenômeno que precisava ser explicado melhor: em face da aniquilação, o homem retém tudo aquilo que o define. ”

Enquanto eu acompanhava tais explicações ia também procurando sair do estado de pasmo em que estava. Aturdida, chocada, o que mais? Nunca saberemos como é estar em uma prisão de guerra ou em um campo de concentração em um estado de fome imensa e sem esperança de vida, em condições terríveis, por serem locais especialmente preparados para a morte.

Mesmo assim, houve grupos que se juntaram para tentar sobreviver a esses horrores a partir de momentos de partilha em vários cantos do mundo.

No contexto de absurdidades dos campos de concentração, as receitas talvez lembrassem uma possibilidade de paz, de organização ou de sequência ordenadora. Talvez também trouxessem um pouco de liberdade em contextos de aprisionamento em geral.

No documentário, uma voz sussurrada vai lendo os nomes das receitas doces e salgadas e seus ingredientes, temperos e detalhes culinários populares ou sofisticados. Na verdade, cada palavra representando um segredo para a manutenção da vida. Vozes baixas em comunicação proibida ditavam as receitas para todos de um grupo capenga, manco, imprestável fisicamente, mas teimoso, insistente muito vivo e atento se segurando uns aos outros para o básico e essencial.

O que mais há de haver? Deve haver mais. Talvez um sistema que na natureza humana vai além de nossa capacidade racional e mental de compreensão, dentro dos campos do imaginário e do simbólico a que só temos acesso quando nos abrimos para ele em condições especiais. Acionando talvez processos bioquímicos do cérebro como diz Antônio Damásio? Sim, mas tais explicações científicas ainda são palavras. Difícil acreditar. Impossível saber como. Estamos lidando com possíveis depositários de nutrição para o espírito e até para o corpo, canais desconhecidos para nós até o momento em que precisemos deles.

Não podemos determinar cientificamente a extensão do desespero causado pela fome. Nem o inalcançável poder da imaginação como possibilidade de superação no empenho pela sobrevivência. Os grupos se juntam para o essencial reproduzindo tal busca em cadernos de receitas, o que segundo as palavras de Anne Goerget, retém, face à aniquilação, o que os define. A comida, a força do grupo, os olhos nos olhos? Ignoramos o que está oculto nessa mobilização de recursos humanos para a vida. Um mistério insolúvel.

Vivo uma sensação de pequenez e de ignorância perante estes fatos.  Por mais que eu elabore estas ideias, abrindo bastante o leque de vazios possíveis para que possam nele caber o que eu não sei, minha admiração por estes banquetes imaginários não diminui. Experiência que comporta um misto de sentimentos que vão de dor, sofrimento e até uma estranha beleza. Um encontro justo em relação à grandeza insondável da natureza humana.

PS: Para escrever este artigo levei em conta as informações do filme Banquetes Imaginários, pesquisas na internet e a palestra TED La Rochelle de Anne Georget , cujo link passo em seguida:https://www.youtube.com/watch?v=qjQmctQPjeI