quarta-feira, 27 de setembro de 2017

A CIDADE E EU

Ana Maria M. González

Como você vive a cidade em que mora? Pergunta estranha? À primeira vista sim, mas nem tanto se percebermos que ela pode nos fazer entender o paraíso ou o inferno do nosso dia-a-dia. Algumas mudanças são possíveis em nossos hábitos urbanos? Vivemos em um labirinto ou um espaço coletivo? Como acabo colecionando histórias da cidade? Estes são nossos assuntos de hoje. Leia e comente.

MUDANÇAS

Cansada de carro e de trânsito congestionado, há cerca de três anos eu comecei a andar de ônibus. Vários motivos foram se acumulando e aos poucos passei a observar o transporte público com mais simpatia. Menos tempo em imensos congestionamentos naquelas vias em que isso se repete ad eternum, mais movimento para minhas pernas que sinto mais fortes, menos gastos abusivos em estacionamentos, uma colaboração para a diminuição de monóxido de carbono no ar coletivo.

Como se tudo isso não bastasse, descobri outra cidade e outra população. Fiquei mais próxima de muitas histórias que se contaram perante meus olhos. E conheci um blog de gente que defende uma forma de pensar mais contemporânea. Por exemplo, como quebrar paradigmas comportamentais e preconceitos a fim de gerar uma cidade mais humana? Simpático, não é mesmo? E há números a corroborar essa questão. Vamos a eles.

PRO COLETIVO

Dados estatísticos mostram números assustadores por prejuízos no tempo perdido nos deslocamentos, por efeitos da poluição na saúde pública e por mortes no trânsito. A substituição por outras formas de mobilidade como o transporte público, o pedestrianismo e o ciclismo, podem mudar esses números, evitando desastres e tornando a cidade mais gentil e possivelmente, mais humana. 

Anna Paula Serodio, uma das fundadoras do blog PRO COLETIVO (https://www.procoletivo.com.br/blog) explica: “Pretendemos desenvolver uma nova visão de valores e hábitos, pois a cultura atual ainda é fortemente apoiada no carro individual” Ela continua: “Queremos facilitar a conexão das pessoas com a cidade de São Paulo e com sua coletividade para que elas vivam a “cidadania ativa”: as sociedades com cidadãos ativos funcionam melhor do que as que estão voltadas para o individual por promoverem a solidariedade, a empatia e a preocupação com o próximo e com o ambiente”.

Bonitas palavras, tudo isso parece tão sensato e fácil. Mas não é. Mudar hábitos e cultura demandam tempo, pois, o desenvolvimento de tais mudanças só poderá acontecer junto a uma nova consciência a respeito desses assuntos. A noção do que o coletivo é boa alternativa ainda não está tão clara para nossa sociedade. Daí a necessidade do trabalho do PRO COLETIVO e de pessoas que possam colaborar na disseminação dessa cultura em uma ação conjunta pelo bem de todos.

Há uma frase que sintetiza o que há por ser feito: “País rico não é aquele em que pobre anda de carro, é aquele em que o rico anda de transporte público”. Quando poderemos dizer que temos essa riqueza social mais perto de nós?

Argumentos contra esse hábito a favor do transporte público são, entre outros, a questionável segurança pública e o mal estado das calçadas. Mas, sempre teremos argumentos contra.  Como otimizar os argumentos a favor dessa cidade mais humanitária?

MEUS CAMINHOS PELA CIDADE

Na história de como surgiram as cidades, Lima de Freitas, artista e pensador português (1927-1998) nos diz que “Invertendo sua primitiva função de dispositivo de proteção, que concentrava e fazia convergir os esforços do clã, garantindo a vida comunitária, a cidade ressuscita a figura tenebrosa do Minotauro, devorador de homens.”

Sem dúvida, concordamos com ele. A urbe ganhou complexidade descomunal que não tem piedade de nós. Somos todos cúmplices dessa sensação de sermos devorados. Minotauros nos espreitam a cada esquina.

Mas, também há hoje em dia novas ideias a respeito dessa construção urbana, que acabou ao longo do tempo gerando tantos efeitos perversos para a população. Há propostas de novas posturas diante desses labirintos, que se não podem ser extirpados nem substituídos, podem, quem sabe, passar por uma releitura. Como transformar nossa experiência desse labirinto em que nos movimentamos? Novos pensadores arejam outras perspectivas acerca da vida urbana.

Uma cidade é espaço público, diz o pesquisador Jordi Borja, geógrafo e urbanista espanhol. “O espaço público é também, e antes de tudo, espaço de uso coletivo, livre, heterogêneo, multifuncional, de convivência, integrador, carregado de sentido, de memórias, de identidade. Proporciona bens e serviços aos cidadãos e permite promover a redistribuição social mediante formas de salário indireto. No espaço público os cidadãos se reconhecem mutuamente como tal, sujeitos a direitos, livres e iguais. Neste espaço afirma-se, por sua vez, a individualidade de cada um e a existência de uma comunidade de pessoas que mantém os laços solidários e valores contraditórios. O espaço público é o âmbito de expressão política, a favor ou contra os podere s existentes”.

Ou seja, uma nova concepção urbana é possível. Não mais o labirinto. Resisto a ser devorada por formas de medo sutis e outras nem tanto.

Surge pouco a pouco uma nova perspectiva de espaço público a ser partilhado e ocupado por postura política e social em que podemos ser capazes de novas funções. Há um discurso que aposta nessa recomposição da urbe, que pode ser lida como espaço a ser partilhado na diversidade e multiplicidade. Riqueza a ser cuidada.

De forma não muito clara, eu também acreditei nisso quando comecei a deixar o carro pelo ônibus. E essa atitude foi apenas o começo de algo surpreendente. Descobri desde então outros caminhos e uma nova convivência com gente com que dificilmente eu entraria em contato. Agradeço essa oportunidade que me foi dada pelas circunstâncias de estar em outros veículos de transporte. Me vejo diante de situações inusitadas, engraçadas, tensas. Me sinto parte de uma coletividade, compondo uma identidade grupal. Me alimento de significados imprevistos em meio a um convívio que integra, amplia, apaixona. Talvez isso seja uma espécie particular de cidadania.

Mas, minha imaginação se liberta nessa paixão pela cidade, que por não ser mais só labirinto, ganha outras expressões. Observo e mantenho comigo fios de muitas ariadnes que me habitam em convivência possível com minotauros e teseus a se defrontar também dentro de mim. E mais do que isso, também pressinto que seria bom criarmos novas personagens que representem essa nova cidade. Como se definirão elas? Onde estão?

Enquanto isso, nessas andanças por coletivos, perco-me nesta cidade tão minha com distração e reflexões, momentos de poesia, às vezes dúvidas, muita paixão e amor.

Mas, além de me perder, por efeito generoso da mesma urbe labiríntica, sinto que ela é também mandala a me emprestar terreno e consciência, a me dar direções e imagens de mim. Nela, sou mais do que eu mesma, em ritual de pertencimento sou manifestação espacial de um imenso coletivo.