segunda-feira, 9 de abril de 2018

A CORAGEM E O SONHO


Ana Maria M. González

A LIVRARIA, o filme de Isabel Coixet, é baseado no livro de Penelope Fitzgerald de mesmo nome. Vale lembrar que esse filme na premiação Goya (da Academia de Artes e Cinema espanhola) em 2018 foi  indicado em onze categorias e ganhou três: Roteiro Adaptado, Diretor e Melhor Filme. Isabel Coixet é veterana e conta entre seus inúmeros filmes A HISTÓRIA SECRETA DAS PALAVRAS.

No final dos anos 50 em uma pequena cidade do litoral da Inglaterra, Florence Green (Emily Mortiner) coloca em prática o sonho de abrir uma livraria. Ela não sabe que encontrará todo o tipo de resistência de figuras importantes da cidade.
E assim, pouco a pouco vamos descobrindo quais são essas resistências e como se constroem as alianças políticas que se colocam contra esse projeto tão aparentemente eficiente e útil para a cidade.

Enquanto Florence trabalha para a manutenção de seu projeto, desenvolve vínculos de afeto e cumplicidade com a pequena Cristine e com o Edmund Brundish, figura solitária e misteriosa, em torno da qual muitas histórias são inventadas. Trata-se de um povoado pequeno em que as conversas e fofocas se multiplicam acerca de todos os habitantes.

E as forças do poder em suas variadas formas de manipulação acabam por desmoronar seu sonho. Florence vê seu investimento ser destruído até que vai embora sem auferir nenhum benefício de todo seu esforço.

Mas, a narrativa não acaba nesse vácuo de frustração e desconsolo. Ele apresenta uma surpresa que não será contada aqui. Nem esse filme se limita a essa história, que guarda complexidades e finas análises da natureza humana que poderão colocar á prova nossa capacidade de percepção. Tudo isso em um pequeno contexto social com um pedaço de uma natureza grandiosa.

Fica o convite para esse filme delicado e bonito em que o trabalho de câmera com marcações especiais substitui um excesso desnecessário de palavras. O universo criado pela diretora tem ação aparentemente lenta e essa escolha é significativa. Uma leitura em voz alta pelas personagens traz inovação na maneira de narrar substituindo a simples leitura de cartas escritas entre elas, dando um toque (especial) literário à história.

Por sua vez, a paisagem e os ventos nas ramas das árvores e folhagens são detalhe que é também parte importante da beleza desse filme.

Trata-se de uma história de amor aos livros, à leitura e à coragem humana, uma das mais importantes virtudes da natureza humana segundo um essencial diálogo entre Florence e Edmund.

E para nós, sobra a sensação de que os sonhos merecem ser perseguidos porque os movimentos nessa direção deixarão rastros mesmo que não nos apercebamos deles. Há uma rede de influência mágica e sutil entre as pessoas que é amplificada gerando frutos, em princípio, invisíveis.

Mais à frente, tais rastros dirão a que vieram. E haverá sua manifestação e, então, tudo estará em paz.

segunda-feira, 5 de março de 2018

O INSULTO, OU A INVASÃO BÁRBARA DAS EMOÇÕES


Ana Maria M. González

Este artigo tratará de um filme que se passa em Beirute, em contexto social complexo. Engana-se, porém, quem julgar precipitadamente que a difícil situação político-religiosa local justifica tudo o que vem depois de um insulto, um pequeno fato. A elaboração do tema da ofensa verbal adquire complexidades nas mãos talentosas do diretor. Ele nos oferece mais para pensar do que uma explicação simplesmente óbvia. São muitos os mistérios da natureza humana.  

                                                 
UM INSULTO APENAS

Como um ataque verbal pode tomar proporções imensas a ponto de mexer com a opinião pública de um país? Esse é a linha principal do filme O INSULTO, indicado ao prêmio de melhor filme estrangeiro. A direção do filme é de Ziad Doueiri (1963), libanês que estudou nos EUA e vive na França atualmente. Ele tem na bagagem o trabalho de assistente de câmera junto a Quentin Tarantino em alguns filmes , entre os quais
 Pulp Fiction.
 
Toni (Adel Karam) é um cristão libanês que, regando suas plantas na varanda, molha o palestino refugiado Yasser Abdallah Salameh (Kamel El Basha) engenheiro responsável por uma obra no bairro em que Toni mora. O engenheiro por conta de sua responsabilidade faz a instalação do cano que resolve o problema sem o consentimento de Toni, que reage com muita raiva. Quebrar o cano a marteladas é apenas o começo de uma série de atitudes temperamentais que crescem fora de qualquer lógica. Às marteladas, segue-se um xingamento de Yasser. Está montado o circo. Um xingamento, uma humilhação, agressão física e em crescente complicação, uma questão judicial, mais aspectos de problemas políticos e religiosos, descobertas de segredos pessoais. Em intensa fermentação, com a presença da mídia e de autoridades, o povo da cidade se envolve, contra e a favor. Quem tem razão?
                                               
A INVASÃO BÁRBARA
Quando eu escolhi assistir a esse filme, fui preparada para as questões políticas e religiosas, características daquela região do Oriente Médio. Guerras, disputas, mistura de sacro e profano. Puro preconceito meu, claro. Ideias à priori, que eu estava trazendo dentro de mim.

Felizmente, a narrativa foi se ampliando para além das minhas preconcepções e desfazendo tais ideias, me surpreendendo. As ações foram se acumulando em ritmo de cortes rápidos e desenhando dois contextos, um externo e relacionado ao coletivo e social, e outro subjetivo e relativo às personagens masculinas, protagonistas e opostas.
Elas são foco e presença em constante confronto de posturas, de temperamento e de ideias. Cada um com suas histórias e preferências. Aos poucos, conhecemos suas histórias particulares, a partir da interferência dos argumentos dos advogados. Essa abertura para informações da vida de cada um deles, justificaria seus comportamentos? Justificar para então avaliar ? Não me parece ser assim que funciona o sistema judicial.

Cresce o burburinho, crescem opiniões ligadas à ideologia e situação social de cada um: minoria cristã e
 palestinos refugiados. Em uma região em que a guerra está no ar, mais dados são adicionados para conspirar contra a solução do problema. Aumentando a confusão deste cenário coletivo, surge a questão dos judeus e do sionismo.

O que era no começo uma questão de calha ilegal de uma varanda e de um xingamento pessoal, ao final da narrativa, tinha alcançado proporções de um tribunal com cobertura midiática e repercussão em toda a nação. A interferência de autoridades e das mulheres de cada um, todos em tentativa de apaziguamento. Em vão. Posições irredutíveis mantidas. 

Desde o início, observamos as emoções dominando as decisões pessoais de um e outro. Uma falta de lógica que conduz ao crescente absurdo, que beira o irracional. Não é inútil a discussão a respeito da natureza humana em meio às intervenções apresentadas pelos advogados no tribunal. Essa invasão de argumentos que têm caráter emocional é maior do que o fato detonador em si, que foi atropelado por outras questões mais amplas não por acaso ligadas à natureza humana.

As emoções são oportunistas e embarcam nas ideologias religiosas ou políticas. Pegam carona. Assim Toni parece jogar sua raiva e indignação por um fato da infância, contra uma pessoa que representaria um oponente capaz de receber tal culpa. Esse exagero de raiva e agressividade se contrapõe ao controle e silêncio resiliente de Yasser.

Há guinadas de expectativa no tribunal. E o acirramento da postura da população não diminui. Esse descontrole, talvez seja a expressão daquela parte da natureza humana que é bárbara e que torna difícil a resolução das disputas. Aquela que se aproxima do cérebro reptiliano e da irracionalidade. Nesses casos não há lugar para diálogo, nem para clareza de argumentos. A agressividade e o confronto corporal são a linguagem possível nessa guerra.
Orgulho e agressividade, paixões e raiva consumiram Toni e Yasser. E invadem a população fora do tribunal. Essa barbárie que é coletiva, começa dentro de cada um, tem um respaldo subjetivo que é alimentado pelo comportamento social do grupo. É no escondido de nossas emoções que ela prolifera. Um descuido, e pronto! Exteriorizada sai do controle.

Ao final do julgamento os olhares desses dois homens se encontram de forma diferente. Aceitam que sua querela terminou? Toni sentindo--se absolvido por suas memórias , pode olhar seu oponente, de forma diferente? Yasser, em sua observação muda (orgulhosa?) sente que se fez a justiça? Fez-se uma paz, enfim?  

Sim, a natureza humana é cheia de sutilezas. Merece ser elaborada e não no tempo de um julgamento. O diretor aponta para a sua complexidade. Ela é a mesma para todos, minorias cristãs e palestinos refugiados, que antes de serem grupos são coleção de indivíduos.

Somos todos iguais. A vida é igual para todos. Difícil. Não nos enganemos.

quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

LUCKY, OU, UM SORRISO APENAS

Ana Maria M. González

SERÁ UM FAROESTE?

Podemos até pensar que esse filme é uma espécie de faroeste por inúmeros aspectos. Na verdade, sem tiros e sem mocinha. Mas temos botas, chapéu surrado e saloon com prostituta. A (linda) sonoplastia traz gaita, claro! Talvez seja uma homenagem ao estilo. Mas, principalmente, assistimos a uma reflexão a respeito dos significados das palavras, da amizade, da vida e da morte, da capacidade de transformações em nossas vidas. E do poder de um sorriso.

O VELHO LUCKY     
    
Lucky (2017),  dirigido por John Carroll Lynch, tem Harry Dean Stanton (Paris, Texas) como protagonista e, entre outros, David Lynch (normalmente mais discreto) em papel memorável.

O filme mostra a rotina do dia-a-dia de Lucky, um ateu ranzinza e de pouca fala, ex-soldado da Segunda Guerra. Seu despertar e ligar o rádio, a higiene pessoal, a ginástica. Seus cuidados com a aparência e caminhadas pela cidade. Palavras cruzadas e café. Assistir à TV para programas de jogos com auditório. Falar ao telefone vermelho.

Uma vida organizada e que se desenrola tranquilamente até que um dia ele cai ao chão. Desmaio? O médico depois de exames lhe dá o diagnóstico: Velhice. “Não vou lhe proibir o cigarro , o que isso sim, poderá lhe fazer mal”.
Um tanto desconsolado, o caubói volta à sua rotina. Mas algo aconteceu. Uma crise se instalou.

Continua fazendo suas longas caminhadas até a vila e fumando muito em todos os lugares. Em todos não. Há uma casa noturna que o teria expulsado, por ter acendido um cigarro!, visto que é proibido. Será verdade? Segundo Lucky, não é essa a verdade.

PALAVRAS CRUZADAS

Ele anda até a cafeteria e senta para um café e palavras cruzadas. Envolve os conhecidos em seu jogo, pensando as palavras, procurando seu significado. Tem em sua casa em local apropriado um dicionário para consultas.

Realismo é uma coisa?, ele pergunta. A resposta vem: “Sim, é aceitar a situação como ela é e lidar com ela de modo adequado”. Questionar as palavras é um exercício aplicado às experiências de vida.

À noite, no bar, toma seu Bloody Mary e troca ideias. E esse universo limitado é vivido assim de forma simples e inteligente, entre velhos amigos participando de seus importantes diálogos. 

A Elaine, dona do saloon, ops! do bar, conta como passou a ser respeitada em um mundo de homens. Howard conta como foi afetado pelo animal de estimação (um cágado).

Em outros momentos, outros diálogos. O soldado no restaurante relata uma cena de guerra contundente em que ele se depara uma criança que lhe trouxe uma verdade da vida em forma de pura alegria.  E Lucky nos confessa a maior tristeza de sua vida, que foi a morte de um rouxinol, por sua responsabilidade, que parou o canto e fez “baixar o silêncio no mundo. Foi devastador ”. São todos diálogos essenciais em relação a essas personagens.

HOMEM AFORTUNADO

Vamos nos afeiçoando a esse homem comprido,  magro e de poucas falas, já que para ele  “o silencio é melhor do que conversa mole” .

E a personagem vai se revelando aos poucos. Parece tratar-se de um homem duro, que não foge de uma briga e gosta de quebrar regras. Na verdade, o quadro que temos dele é mais complexo do que qualquer descrição didática. Sendo cético, ao cair no chão em desmaio, geme “Jesus Cristo”!  

E ele vai se abrindo a uma gama de emoções que passa pela confissão de medo (da morte?). E ainda por outra que traz a lembrança triste de sua infância. Há necessidade de revelar essa dor (e culpa?) para se safar dessa memória incômoda, angústia. Há um descongelamento em curso nesse caubói.  

Até que, em festa de aniversário, ele canta de improviso uma canção de amor, em espanhol junto dos mariachis. Teria ele se lembrado de uma mulher, de uma história de sua vida?

E outros acontecimentos vão se juntando nesse filme que é lento mas, que tem vários níveis de acontecimentos, de silêncios e de emoção.

Não podemos medir o tamanho das mudanças que ocorreram dentro dele a partir da crise pós desmaio. Mas, podemos identificar sinais, delicadezas como o canto na festa falando de amor. Ou quando ele olha para dentro do tubo que é a entrada do espaço noturno Eve´s, e enfim, a câmera nos mostra o que tem dentro. Um cenário verde, de águas e cantos de pássaros. Como se, agora ele pudesse olhar esse pedaço de paraíso perdido sem o amaldiçoar com xingamento.

A câmera abre alguns segredos e guarda outros. Se podemos ter a perspectiva da entrada da casa noturna, não ficamos sabendo quem é a parceria do telefone vermelho. Da mesma forma, somente nós ficamos sabendo que o cágado está bem perto dali, enquanto seu dono passa por estágios de sofrimento variados até que aceita a perda e a solidão. Estratégias do diretor e do roteirista. Detalhes de um grande filme.

Nos instantes finais, Lucky pára em frente ao pé de cactos e nos dá um sorriso que alivia e amansa a rudeza de sua face. Um sorriso que nos lembra a história da criança que sorri para o destino a partir de sua alma. Pura alegria.

Por que ele seria um afortunado? Pelo trabalho na cozinha de um navio na Segunda Guerra? Pela maneira de viver? Pela aceitação do realismo na vida? Por isso tudo?

Enquanto isso o cágado está bem perto, naquele cenário agreste e seco. Andando no sentido inverso daquele do início do filme. Ele abriu e agora fecha a narrativa. Nada mais justo, surpreendente e correto.

É o momento do nosso sorriso.

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